29 novembro 2013

a calmaria do finito

[…]


escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido

é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta nocturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo

[…]


Al Berto, O Medo, três cartas da memória das índias (excerto)

21 outubro 2013

sonhe como se fosse viver para sempre, viva como se fosse morrer amanhã.

James Dean

17 outubro 2013

08 outubro 2013

A lassidão dos corpos abandonados aos segredos do sono um do outro...é bela!

Al Berto

06 outubro 2013

És tudo para mim
Odeio-te
Esta é a que vou comer a seguir.
Gostas que eu te foda?
Eu mato-te
Casa comigo
Sai da minha vida
Sai da minha casa
Ja nem consegues olhar para mim
Amo-te
Estamos amaldiçoadas
És a pior coisa que me aconteceu
Não sei viver sem ti
Amo-a, estou feliz. Segue a tua vida.
Sou louca por ti.
Estou doente, vou deitar-me.
És uma puta.
Nojenta.
Fica comigo.
Deixa-me. 
Adoras-me?
És a mulher da minha vida.
Quero morrer.
So me fazes mal!
Vicio de ti.
Saudades tuas. 
És um nojo.
Tu, também, hás-de abandonar-me. Vai logo de uma vez. 
Se feliz.

02 outubro 2013

Mal du siècle

"Amo-te tanto que te não sei amar , amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio."

António Lobo Antunes, in Memória de Elefante

the wave

01 outubro 2013

oitenta e quatro meses sem ti

“Mas a memória guarda-me o teu cheiro, as tuas mãos e o teu sorriso. Olho ao espelho e vejo o teu nariz. Olho para as mãos da mãe e vejo as tuas unhas. Estás em nós e eu estou em ti. Eu jamais seria eu sem a tua presença constante na minha vida”

José Luís Peixoto, Morreste-me

30 setembro 2013

a alegria mansinha que traz o cheiro a terra molhada

E o pior é pensar onde havemos de arranjar forças para no dia seguinte continuar a fazer o que fizemos na véspera e ainda em tantos outros dias já passados, onde encontraremos forças para tantas diligências imbecis, para mil e um projectos que não conduzem a nada, para as tentativas de vencer uma acabrunhante necessidade, tentativas que acabam sempre por abortar, e tudo isso para nos capacitarmos uma vez mais de que o destino é imutável e que o melhor é conformarmo-nos em ter de cair todas as noites da muralha abaixo, sob a angústia desse dia seguinte, sempre mais instável e sórdido.


É talvez a idade que surge, traidora, e nos ameaça com o pior. Já não existe dentro de cada um de nós música suficiente para fazer dançar a vida, aí está. Toda a juventude nos abandonou para ir morrer no fim do mundo, num silêncio de verdade. Para onde ir agora, pergunto, depois de não possuirmos em nós a soma bastante de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Precisamos escolher: mentir ou morrer. E eu nunca consegui matar-me.


Louis-Ferdinand Céline

Diários

A queimadura purpura que reside na pele depois desta tertúlia.
Faz-me padecer de todas as dores que ainda não senti. 

28 setembro 2013

Reinventar a perfeição da vida que é a do seu milagre e estupidez. Calar de mim a voz do meu excesso e ser todo no meu nada. E esquecer, esquecer o antes e o depois, sobretudo o que está antes e depois de todos os depois e antes. 

Vergílio Ferreira, até ao fim

25 setembro 2013

Maya Deren, Meshes of the Afeternoon (1943)















"Há uma desproporção enorme entre a minha urgência e a lentidão de tudo."
Vergílio Ferreira, até ao fim










23 setembro 2013

até sempre

Vive-se quando se vive a substância intacta 
em estar a ser sua ardente   harmonia 
que se expande em clara atmosfera 
leve e sem delírio ou talvez delirando 
no vértice da frescura onde a imagem treme 
um pouco na visão intensa e fluida(...)



António Ramos Rosa















Ladies who have fallen into disrepute


21 setembro 2013

diários

esta dor esvicerante. corroi-me o cheiro dela ainda nos meus dedos. estou tão cansado. podia morrer agora que tenho certo que esta dor acompanhar-me-ia para a cova. que merda.
Daughter, Love

eram espinhos #2

viu uma rosa à beira do caminho, era bela, vermelho sangue, não conseguiu dar nem mais um passo em frente. quis tocá-la, tocou-a, picou-se, sangrou, doeu, chorou; deu três passos atrás, quis tocá-la novamente, tocou-a, picou-se, doeu, chorou; deu quatro passos atrás, quis tocá-la ainda outra vez, tocou-a, picou-se, doeu, chorou; - e diz que a ama. não deu nunca mais um passo em frente.

20 setembro 2013

dias confusos

"ele disse: acredito na paixão inocente, naquela que se pode viver em segredo, que não magoa mais do que a nós próprios que a sentimos.

ela disse: às vezes penso que o destino cruza caminhos em tempos errados. desejamos pessoas nos tempos errados. sentimos saudades quando já é tarde.
ele disse: talvez porque precisamos de ser avisados constantemente que podemos mudar de trajectória.

ela disse: talvez porque mesmo que sentados aqui, para sempre, possamos acreditar que podíamos estar em outro lugar, e sermos completamente diferentes."


Mia Couto

19 setembro 2013

Saudade é solidão acompanhada
é quando o amor ainda não foi embora, 
mas a amada já ...

Saudade é amar um passado 
que ainda não passou, 
é recusar um presente que nos magoa, 
é não ver o futuro que nos convida ... 

Saudade é sentir que existe 
o que não existe mais ... 

Saudade é o inferno dos que perderam, 
é a dor dos que ficaram para trás, 
é o gosto de morte na boca dos que continuam ... (...)


pablo neruda

17 setembro 2013

Fight Club











/Vício (do latim "vitium", que significa "falha" ou "defeito" ) é um hábito repetitivo que degenera ou causa algum prejuízo ao viciado e aos que com ele convivem.
Amanheci em cólera.
Não, não, o mundo não me agrada.

Clarice Lispector

13 setembro 2013

brincávamos a cair nos 
braços um do outro, como faziam 
as actrizes nos filmes com o marlon 
brando, e depois suspirávamos e ríamos 
sem saber que habituávamos o coração à 
dor. queríamos o amor um pelo outro 
sem hesitações, como se a desgraça nos 
servisse bem e, a ver filmes, achávamos que 
o peito era todo em movimento e não 
sabíamos que a vida podia parar um 
dia. eu ainda te disse que me doíam os 
braços e que, mesmo sendo o rapaz, o 
cansaço chegava e instalava-se no meu 
poço de medo. tu rias e caías uma e outra 
vez à espera de acreditares apenas no que 
fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, 
quando percebíamos que o mundo era 
feito de distância e tanto tempo vazio, tu 
ficavas muito feminina e abandonada e eu 
sofria mais ainda com isso. estavas tão 
diferente de mim como se já tivesses 
partido e eu fosse apenas um local esquecido 
sem significado maior no teu caminho. tu 
dizias que se morrêssemos juntos 
entraríamos juntos no paraíso e querias 
culpar-me por ser triste de outro modo, um 
modo mais perene, lento, covarde. Eu 
amava-te e julgava bem que amar era 
afeiçoar o corpo ao perigo. caía eu 
nos teus braços, fazias um 
bigode no teu rosto como se fosses o 
marlon brando. eu, que te descobria como se 
descobrem fantasias no inferno, não 
queria ser beijado pelo marlon brando e 
entrava numa combustão modesta que, às 
batidas do meu coração, iluminava o meu 
rosto como lâmpada falhando 

a minha mãe dizia-me, valter tem cuidado, não 
brinques assim, vais partir uma perna, vais 
partir a cabeça, vais partir o 
coração. e estava certa, foi tudo verdade 

valter hugo mãe

sexta-feira,13

da minha janela vê-se uma espécie muito rara de angústia
tem o corpo que não ousei que me fosse
usa o amor como se fosse a origem da sede
e sossega-se contra o peito da alvorada

da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida

da minha janela não se vê mais nada
ouve-se o silêncio contra mim
e chove morte contra os vidros
por dentro como soa o fim

Pedro Sena-Lino

12 setembro 2013

à sétima badalada o coração congelou

Cafe Muller, Pina Bausch














És uma ruína fantástica. Eu também.
(...)

Lembro-te-me.


João Miguel Fernandes Jorge

10 setembro 2013

You will hear thunder and remember me.
And think: she wanted storms.


Anna Akhmatova
a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

Samuel Beckett

02 setembro 2013

Heimweh

(...) ao mar, pois, eu me fiz, mar alto aberto.

O Canto de Ulisses, Divina Comédia

o coração colado à boca colada à alma

(...)
Não ranjo. Não sangro. Não choro. Não peço. Não morro.
A não ser que me sobrevenha uma embolia ao baralho. Ao caralho.
Por isso, conservo-me em álcool. Como os miúdos fazem às cobras.
O formol é para os Deuses.


Miguel Martins

30 agosto 2013

evenabrokenheart

Right or wrong, it's very pleasant to break something from time to time.


Fyodor Dostoyevsky

29 agosto 2013

last night



“Pela noite fechada de silêncio, escrevo. É uma noite de Inverno, limpa, definitiva, uma evidência brilha na sua linearidade, no diagrama das estrelas… Olho-a, ouço-a. Todas as vozes obscuras, como bichos nocturnos, sobem ao limite do meu espanto, da minha vigília. (…)
Um homem novo recria-se-me na transparência do seu ser. Sinto-o leve e lúcido, instantâneo e incandescente, por entre cinzas que o fogo deixou. (…) o homem primordial que em mim sobe tem a face atónita de uma primeira interrogação. E não é isso uma imagem, uma figuração com que procuremos, contra um hábito endurecido, abrir os olhos a um novo modo de ver. (…) Sou eu só, diante de mim e da noite, irredutível e inútil na minha lucidez.
E no entanto, nenhuma desculpa me tranquiliza o remorso da urgência de um mundo a repovoar. É um remorso que se agrava à certeza de que os outros se reconhecem na mesma urgência e vazio. (…)
A invenção de um novo mundo não é uma invenção de ninguém. Não está na nossa mão criá-lo; está só, quando muito, ajudar no seu parto. E todavia – sabemo-lo bem – é em nós que ele se gera; mas tão longe de onde estamos, que só já quando irrevogável o sabemos. Um mundo acontece na escolha interminável de nós. Assim pois, testemunhas apenas à superfície desse acto de criação, (…), nós cumprimos sempre as ordens que ninguém deu e não as pudemos pois discutir. (…) A última justificação de todas as justificações escapa sempre ao homem e dela chega apenas até ele o seu eco pluralizado. (…)
E todo o problema do mundo de hoje está aí. Regresso a mim, ao meu corpo distinto e classificável onde todo o milagre aconteceu. E pergunto-me, suspenso, como foi possível, como é que uma breve semente abriu assim até essa Voz, até ao silêncio donde essa Voz falou. Frente ao grande sono dos homens que o esqueceram, na atenção inexorável ao sem limite de mim, a minha vigília arde como um fogo assassino. É um fogo alto e poderoso. Lume breve na minha intimidade, na brevidade de um pequeno ser, eu, anónimo e avulso, ocasional e frágil – eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o assalto da noite. Trago em mim a força monstruosa de interrogar, mais força que a força de uma pergunta. (…) o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação.” 

― Vergílio Ferreira, Invocação ao meu corpo

28 agosto 2013

o pesadelo dentro do sonho ou vice-versa, não interessa.

Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas
                                           [clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.

Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma líquida
                                                            [e atormentada

desvenderá em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'
 

O facto suscita em nós raiva e riso e um estranho alívio

Todos descobrem, mais tarde ou mais cedo, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm no pensar na consideração oposta: que também uma infelicidade perfeita é, igualmente, não realizável.

Primo Levi, in Se Isto É Um Homem

22 agosto 2013

diários/por favor um copo de morte temporária

Hoje todas as dores resolveram saltar para o tempo real, passeiam orgulhosamente a meu lado. e revivo-as a todas, separadamente, não, todas ao mesmo tempo. A perda da minha irmã, a perda do meu pai, duas vezes na mesma vida, o filho que matei, a dor da droga,a dor da doença,-"és doente Cláudia", a perda dela. Que turbilhão de dores..  não há corpo suficiente para chorá-las todas. E choro-as todas agora, tanto como naqueles dias!

K.O





Abandonamos o ringue.
Pousamos as luvas.
e não houve vencedor.

21 agosto 2013

20 agosto 2013

"são horas de te embriagares"

“You're afraid of it because it's stronger than you, you hate it because you're afraid of it, you love it because you can't master it. You can only love something that refuses to be mastered.” 

― Yevgeny Zamyatin, Nós

18 agosto 2013

Abrir a porta à tempestade

(Não sei como resumir este assunto.
Talvez se possa reduzir tudo a um
único item: um cigarro apagado)

16 agosto 2013


Somos tão novos e estamos tão perdidos. O teu silêncio dentro dos gritos das árvores, meu silencio sobre o entardecer. Seria tão feliz se pudesse dizer-te: 
Vem, vamos fugir de mãos dadas, amor.

José Luis Peixoto

14 agosto 2013

Sábia, Cecília!


Ninguém venha me dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferido,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser,
e não quero me encontrar,
que estou dentro de um navio,
que sei que vai naufragar,

já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.

Corações, por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e os corais.

Fim ditoso, hora feliz:
guardai meu amor sem preço,
que só quis quem não me quis.

Cecília Meireles

13 agosto 2013

"É tão bom começar a manhã com tudo o que queremos ser neste dia. Olhar sem medo pela janela, ensaiar uns passos fora da pele. Já não somos nós, nem mesmo é nosso o dia.Tropeçamos nos olhos espantados à volta do que vemos, precipitamo-nos para dentro e é tudo o pouco que fizemos. Dizemos que a pele é a nossa casa, enumeramos as assoalhadas, a arquitectura sólida, as vantagens de grades nas janelas. Depois fica-se triste até ao fim do dia. Há quem faça compras ou coma chocolate, quem diga mal de todos, quem não acorde a espreitar pela pele como ser outro, mas ele está a dois passos, a respiração, a temperatura, o olhar, o corpo móvel que se afasta levando o horizonte e só nos resta sonhar com a manhã seguinte e todos os dias - todos os dias - mentimos para dentro da pele."

Rosa Alice Branco
podes levar os dias que trouxeste

os pássaros soterraram agosto
e sem lugar um homem cega pela janela
o mar que jura ter tocado com o sangue

podia ter sido o amor se não tivesse vindo
tão directamente da sede
um duplo rosto de enganos e os braços
que saíram desertos
o eco da morte reverbera na pele
com que vejo a tua ausência encher as ruas
um choro de papel cai pela terra
e nunca foi tão tarde ser depois

daqui onde o grito surdo incendeia
a refutação da madrugada
donde o crânio esmaga o coração
um homem corta pela janela
a própria certeza de ter sido

não, é tarde demais para uma manhã
que foi a enterrar em tantas noites

as escadas morreram de sede
a terra caiu em nunca

podes levar os dias que trouxeste


Pedro Sena-Lino

12 agosto 2013

diários





Esfregar a pele até que não haja pele, esfregar até que este sangue velho verta, até que não haja réstia de nada do que presenciou, este sangue. De dentro para fora, arrancar a podridão que me deixaste, até ao avesso. Arrancar a voz! Gritar tão alto, que o todo o mundo ensurdeça, até que eu ensurdeça. Até que não haja voz. Amputar tudo, até que não haja nada.

11 agosto 2013

depois do adeus

I will remember the kisses 
our lips raw with love 
and how you gave me 
everything you had 
and how I 
offered you what was left of 
me, 
and I will remember your small room 
the feel of you 
the light in the window 
your records 
your books 
our morning coffee 
our noons our nights 
our bodies spilled together 
sleeping 
the tiny flowing currents 
immediate and forever 
your leg my leg 
your arm my arm 
your smile and the warmth 
of you 
who made me laugh 
again.

― Charles Bukowski
"Perhaps, somewhere, some day, at a less miserable time, we may see each other again."
Vladimir Nabokov, Lolita 

Amo-te

Amo-te Lisboa. Então porque é que enquanto olho o mar, neste dia aparentemente alegre, neste conversa aparentemente alegre, nesta vida aparentemente alegre, - há uma voz cá dentro que grita ao mar: "vinde maré, levai me para longe, ou levai me para sempre."

09 agosto 2013

“Uma noite acordei com o som dos meus próprios gritos.” 

Herberto Helder, in Servidões

08 agosto 2013

06 agosto 2013

04 agosto 2013

Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.
Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?
Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.
Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.
Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.
Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Pablo Neruda

O que os olhos não vêem, o coração não sente

Danço como se não houvesse amanhã. Os corpos suados deslizam como enguias no breu daquela cave ao som da música desta madrugada branca; e os meus olhos  acompanham 2, 3 de cada vez. E o meu corpo também, que  vontade fora de mim de beber da vida, e a vida. Uníssono por toda aparte, por cima de tudo, impregnado em tudo, e falta algo. Penso nas outras almas que acompanhavam esta sede, que agora já não . Que são casal agora, que preenchem satisfatoriamente as suas vida, já saciadas. Felizes delas. Não necessitar deste oásis no deserto deve ser agradavelmente maravilhoso. 

02 agosto 2013

Hoje acordámos em sitios diferentes... 

Eu, no meio das ruínas que se movem, das sombras que sopram,
das almas em fuga para dentro da vida. 


Tu, no meio das ruínas paradas, das sombras que já não respiram,
das almas em fuga para longe da vida. 


Amanhã, sempre amanhã, tentaremos acordar no mesmo sítio de sempre
e o abismo do medo e da dor irá rir-se de nós enquanto nos engole ou nos deixa passar.

Fernando Ribeiro

Diários

O que mais custa, são as horas passadas à frente da tv. As horas mortas que obrigatoriamente acabam por acontecer, e quado acontecem trazem o culminar das memórias descartadas durante o dia. Todo o esforço pela calma vai por água abaixo no segundo de um piscar de olhos. E a raiva verte por todos os poros. E o desespero. Nessas horas mortas a frente da tv, a tristeza é insuportável. 

01 agosto 2013

(...) Amanhã, ou enquanto dormes 
- agora mesmo - vou pensar em ti.
Intensamente: até que as horas me doam sobre a pele,
e o movimento dos dias passe como aves 
que perdem o sentido do voo - até que tudo
o que me rodeia tome a forma do teu corpo.
E em mim circules - quando estendo a mão 
por dentro da noite e te acordo,
no fogo dos meus olhos.

Al Berto

29 julho 2013

Persona (1966) Ingmar Bergman












Sister Alma: Is it really important not to lie, to speak so that everything rings true? Can one live without lying and quibbling and making excuses? Isn't it better to be lazy and lax and deceitful? Perhaps you even improve by staying as you are. (No response) My words mean nothing to you. People like you can't be reached. I wonder whether your madness isn't the worst kind. You act healthy, act it so well that everyone believes you--everyone except me, because I know how rotten you are.




When I met you I thought
Heartache, sorrow, come my way no more
Thought our love was enough
(...)
Foolish I guess I was
Cos' I dare to dream
"Ontem estava magoada e acabei por ser injusta. Desculpa <3"

- A minha noção de desculpas hoje em dia: Baldes de Merda!

28 julho 2013

"Os desgostos de amor são horríveis. E, por serem horríveis, as pessoas dizem que fazem parte; que são o preço; que são um caminho; que dão força e fazem crescer. Tal é o medo de aceitar a totalidade da tragédia que são, que se chega ao ponto de ver os desgostos de amor como um rito de passagem não só para a humanidade como para o próprio amor – o que é muito mais grave. É sempre outrem que fala assim levemente, alguém que, se calhar, nunca teve um desgosto de amor digno do nome ou, se o teve, já o esqueceu e, ao esquecê-lo, provou que nunca amou, por muito desgostoso que tenha ficado. Porque também existe o desgosto de ser abandonado por alguém de quem nos habituáramos a fugir, e de já não ser amado por quem nunca amámos. Mas isso é um simples desgosto que nada tem a ver com o amor. Já um desgosto de amor é um desgosto completo: uma desilusão e uma angústia; uma frustração de quase não existir, que começa por nós próprios, num incêndio de chuva que vai por aí afora até estragar o mundo inteiro, incluindo o que mais se queria proteger: a pessoa amada. Os abutres da consolação pretendem reclassificar os desgostos e ofender o amor e, distraídos pelo prazer necrófilo de cheirar, mesmo numa pessoa amada, a morte do amor alheio – tão secreta e infinitamente invejado! -, chegam a dizer as três palavras mais estúpidas, cruéis, inúteis e indignas daquelas circunstâncias: “Foi melhor assim.” Acrescentando, às vezes, mais duas: “Deixa lá.” Como se pudéssemos responder: “Boa ideia – vou deixar!” Os desgostos de amor estragam a alma. É preciso ter muito medo deles. Respeito. Cuidadinho. Tratar o amor nas palminhas. Mesmo antes de chegar a pessoa que se vai amar. É que os corações partidos ficam partidos. Deixam de poder amar. E, em vez de amar, tornam-se músculos leves e cínicos, trocistas e elegantes. Pode até ser muito giro ser assim. Mas está para o amor como o gosto duma pedra de sal está para o mar. E às vezes ainda é mais triste: é o próprio gosto pelo amor, como quem gosta de um prazer qualquer, que mata o amor – a possibilidade de amar – logo à nascença. Será este o único desgosto, por muito caladinho que seja, tão grande como um desgosto de amor."

Miguel Esteves Cardoso
(...)
...tudo o que eu gostaria de ter aqui está tão longe, não sei aonde, está longe o amor que às vezes esperava. E não virá...
Consolo a minha saudade com fotografias tuas. Mas sei que há muito se apagaram os sorrisos do teu rosto. Envelhecemos separados, tenho pena, agora já é tarde, estou cansado demais para as alegrias dum reencontro. Não acredito na reconciliação ainda menos no sorriso que fizeste para as fotografias...
(...)



In Diários, Al Berto, edição Assírio, 2012.


25 julho 2013

Diários

Faz de mim um objecto e eu permito-o. E o este querer apenas, por mais destorcido que seja causa-me uma alegria doentia. E revejo-me também nessa necessidade de possessão dela. E a noção desta realidade é assustadora. Mas fico. Deixo que me possua, e na verdade odeio-a por mais uma vez me iludir com palavras bonitas. E é sempre este o caminho. Quero-te. Amo-te. Tenho-te. Deixo-te. 

mileumavoltas

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

Affonso Romano de Sant’Anna

24 julho 2013

Para preencher um Vazio
Inserir a Coisa que o causou -
Tenta bloqueá-lo
com outra – e mais vai se escancarar -
Não se pode soldar um Abismo
Com Ar.


Emily Dickinson

23 julho 2013

Diários

É fascinante o número de mortes que um só corpo atravessa numa só vida.

20 julho 2013

17 julho 2013

Quando eu lhe dizia: " Eu me apaixono todo o dia. E é sempre a pessoa errada." Você sorriu e disse: " Eu gosto de você também."

Renato Russo

15 julho 2013

E quando a aperto nos meus braços, não sei dizer qual a parte em mim que ganha, se a que a ama, se a que a quer matar. É insuportável viver dentro desta obsessão.

11 julho 2013

diários

Vive-se a vida em transe. E para mim, é a única maneira possível de viver hoje em dia. Deixam-se as lágrimas e o desespero para depois. Vive-se a mil à hora, preenchem-se todos os minutos do dia para que nenhum pensamento vago nos assalte de surpresa. Preenche-se a cabeça, a dor e a solidão, preenche-se também a cama e o serão. Não há tempo para deixar o corpo fraquejar, nem o coração. Vive-se tudo de uma vez, e repare-se que nestes momentos a quantidade torna-se duplamente mais importante que a qualidade. E faz-se esperar o inevitável, com a convicção possível. E vive-se assim (ou sobrevive-se), para que quando o transe passar, esperançosamente, o resto também.

10 julho 2013

“Que mistério, a paixão! Uma pessoa suporta tudo até ao dia em que acorda e repara que viveu um engano.”

Rosa Lobato Faria
“Esse é justamente o problema.” Interrompeu-o. O tom exaltou-se pela primeira vez. “Quando estás em controlo é um inferno, quando não estás em controlo é um pesadelo! Achas que é possível para alguém escolher entre ambos?” Questionou-o sem esperar resposta. “Perto de ti tudo é difícil, complicado, confuso, há uma pensão constante em teu redor… manipulas tudo e todos, misturas verdades com mentira até que é insano sequer tentar perceber-te!” Desabafou. “E… de uma maneira ou de outra, mais tarde ou mais cedo, tudo dá em tragédia!”

L.C. Lavado
“Que sucedera para se suicidar, desabismado? Que tropeção derrubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são lixívia, descolorindo os encantos.”

Mia Couto 

evil never dies #2

09 julho 2013
















até não haver mais dor. até não haver mais sangue. até não haver mais nada.
Por um rosto chego ao teu rosto, 
noutro corpo sei o teu corpo. 
Num autocarro, num café me pergunto 
porque não falam o que vai 
no seu silêncio aqueles cujo olhar 
me fala da solidão. 
Esqueço-me de mim. Tão quieto 
pensando na sua pouca coragem, a minha 
sempre adiada. Por um rosto 
chegaria o teu rosto, mesmo de um convite 
ousado fugiria, esta mão conhece-te 
e desenha no ar o hábito 
por que andou antes de saíres 
do espaço à sua volta. Estás longe, 
só assim podes pedir algumas horas 
aos meus dias. Sem fixar a voz 
a tua voz é uma corda, a minha 
um fio a partir-se.


Héder Moura Pereira