29 dezembro 2014


tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues
tu me tues





Tu me tues. Tu me fais du bien.

Hiroshima Mon Amour | Alain Resnais

27 dezembro 2014

Everything about you,
my life, is both
make-believe and real
Charles Simic
Há dias em que não penso uma só palavra
que queira dizer-te, dias em que as fronteiras entre os homens
se encontram permanentemente abertas ao estreitar de mãos,
como laços de gravata a fecharem-se sobre o colarinho da camisa.
Não penso sequer na tua nuvem a morrer todos os dias à minha porta,
mas diz-me, diz-me afinal de contas tudo o que quiseres.
É que eu, eu passei demasiado tempo na tua pele,
a sonhar os gregos com intenções de cerâmica e laser,
e agora é Outono a caminho do teu rosto,
resta-me passar a rua pelos olhos, pedir café e uma amostra de cinema
datado,
tal como a originalidade da nossa história,
entregue a amanuenses talentosos na hora de nos ortografar bem.

Não pareço feliz, mas pareço belo.
Terá de ser suficiente para agarrar pelos cabelos a onda
e fugir para tão longe da praia,
sempre a fingir esta versão super-heróica de mim próprio
de lábios, olhos e estômago pintados
ao jeito de uma obsessão ostensivamente recente:
tendências nunca reconhecidas nos séculos precedentes.

Admitir maternidade nestas putas de livros, à falta de linguagem feminil
que justifique a brandura da nossa crónica,
nunca como um truque, mas como uma tragédia,
enquanto dormes, a fazer de conta que estou aqui,
noite após noite, a tentar perceber porque é que a leitura conjugada
deste e daquele sentido é quase uma colagem
ao lastro de justiça daqueles que nos correm na família.
Escrever na terra prova uma série de coisas,
mas provas bem melhores surgem ao apagá-la,
porque a terra não se encontra com a terra, nem com o sangue.
Não somos pessoas agradáveis de conhecer.

David Teles Pereira, Auto-Biografia 'A Terra'

10 dezembro 2014

darling I'm a nightmare dress like a day dream

Pretty women wonder where my secret lies.
I’m not cute or built to suit a fashion model’s size   
But when I start to tell them,
They think I’m telling lies.
I say,
It’s in the reach of my arms,
The span of my hips,   
The stride of my step,   
The curl of my lips.   
I’m a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,   
That’s me.


I walk into a room
Just as cool as you please,   
And to a man,
The fellows stand or
Fall down on their knees.   
Then they swarm around me,
A hive of honey bees.   
I say,
It’s the fire in my eyes,   
And the flash of my teeth,   
The swing in my waist,   
And the joy in my feet.   
I’m a woman
Phenomenally.


Phenomenal woman,
That’s me.


Men themselves have wondered   
What they see in me.
They try so much
But they can’t touch
My inner mystery.
When I try to show them,   
They say they still can’t see.   
I say,
It’s in the arch of my back,   
The sun of my smile,
The ride of my breasts,
The grace of my style.
I’m a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,
That’s me.


Now you understand
Just why my head’s not bowed.   
I don’t shout or jump about
Or have to talk real loud.   
When you see me passing,
It ought to make you proud.
I say,
It’s in the click of my heels,   
The bend of my hair,   
the palm of my hand,   
The need for my care.   
’Cause I’m a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,
That’s me.

Maya Angelou, “Phenomenal Woman” 

08 dezembro 2014

mais tarde impossível

Que silêncio tão grande. No interior do silêncio mais silêncio e no interior do mais silêncio um relógio minúsculo a anunciar
– Já é tarde, já é tarde
de forma que nem reparamos nos ponteiros. Para quê se o relógio insiste
– Já é tarde, já é tarde
e nós a olharmos uns para os outros, inquietos
– O que diz o relógio?
apesar de termos ouvido perfeitamente a sua vozinha apressada, nós de súbito com medo
– Tarde?
e o que significa tarde meu Deus, o que pretende o relógio? Mesmo tapando as orelhas com as mãos a teimosia permanece
– Já é tarde
mesmo não escutando mais nada escutamos o
– Já é tarde
não sabemos se no relógio se no interior da gente, olhamos em volta, olhamos para dentro à procura, achamos episódios antigos, um triciclo, um avô a espantar-se
– O que tu cresceste
um colar de pérolas
(de quem?)
numa tacinha, achamos a nossa vida de hoje e qual o sentido da nossa vida de hoje, o que fazemos com ela, dias atrás de dias, o supermercado, o jantar no restaurante aos domingos, a maçada das crianças às vezes e não era bem isto que nos apetecia, não era bem isto o que tínhamos desejado, falta qualquer coisa, onde é que errámos, o que falhámos, não somos infelizes mas também não temos o que secretamente ansiávamos, os anos vão passando ...


... (– o que tu cresceste)
e não temos o que secretamente ansiávamos, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta
– E agora?
sem resposta, caras familiares que se tornam estranhas, se te abraçar continuo sozinho, o que se passa comigo, o que se passa connosco, o relógio prossegue
– Já é tarde
monótono, acusador, implacável, os objectos quietinhos sem nos ajudarem
– Porque não nos ajudam?
Nada nos ajuda, é tarde, tentamos conversar e é tarde, fazemos amor e é tarde apesar de termos feito amor na esperança que não seja tarde e depois, em lugar do prazer, ou misturado com o prazer, ou mais forte que o prazer, uma espécie de amargura que persiste, se não dilui, persiste, o
– E agora?
sem resposta aumenta, um
– E agora?
imenso, que horror, um
– E agora?
que nos preenche inteiros, se nos pegassem ao colo, fugissem connosco, nos garantissem
– Não é tarde ainda
e pudéssemos acreditar que não é tarde ainda, tranquilizar-nos afirmando
– Não é tarde ainda
embora cientes que mentimos
– Não é tarde ainda
e tornar a mentira verdade, que outra coisa fizemos para além de tentarmos transformar as mentiras em verdades, não há ninguém mais crédulo que um desesperado
– O que tu cresceste
e em que direcção cresci que não dou por ter crescido, lá está o triciclo, lá está o avô, lá está o colar, os frascos de perfume que cheirávamos às escondidas, os cigarros que fumávamos secretamente no quintal, cresci para onde, cresci como, se nos metermos no carro, se almoçarmos fora, se te pegar na mão melhoramos e contudo ficamos parados a teimar no silêncio
(que silêncio tão grande)
– Já é tarde
e não é o relógio, somos nós
– Já é tarde
não noite ainda e contudo tão tarde, aproximamo-nos da janela, os prédios do costume na rua
(esperavas outros prédios, outro bairro?)
e tão tarde, ganas de apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, de que serve apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, no espelho a nossa cara
– O que tu cresceste
diferente, a nossa cara e diferente, porquê diferente, o que é isto nos olhos, o que é isto na boca, a boca a ecoar
– Tarde
tal como os olhos ecoam
– Tarde
todo o corpo a afirmar
– Tarde
e quando o
– Tarde
diminui, o
– E agora?
a dilatar-se nele, o
– E agora?
imenso, sentamo-nos no sofá com uma revista, o jornal, um livro e as mãos vazias, apertamo-las uma na outra, espreitamos o triciclo, a certeza que se pedalássemos muito depressa não seria tarde, pedalar mais depressa que o relógio, os episódios antigos, aquela parente que nos oferecia rebuçados cujo papel não descolava e se nos prendia aos dentes, tentávamos retirar o papel com a unha e não saía, ainda nos lembramos do gosto do papel na língua, largamos a revista, o jornal, o livro, e ficamos no sofá, tanto tempo passado, com o papel na língua, a mastigá-lo, a mastigá-lo, a mastigá-lo, no fundo da gente nós mesmos a acusarmo-nos
– Porque me tornaste nisto?
o silêncio aumentou tanto que o relógio se calou, uma palma no nosso ombro
– O que foi?
e construímos peça a peça um sorriso difícil
(custa tanto um sorriso)
que responde por nós
– Não foi nada.

António Lobo Antunes




(Aos gritos!)

06 dezembro 2014

diários

Respirei fundo e escutei o velho e orgulhoso som do meu coração. Eu sou, eu sou, eu sou.



Sylvia Plath


(O coração bate mais devagar)

03 dezembro 2014

hoje

I don’t do yoga, never tried Pilates
Not many people want me at their parties
Tryna find my place, some place, oh I, oh I, oh I
And I drink a little more than recommended
This world ain’t exactly what my heart expected
Tryna find my way someway, oh I, oh I, oh I

[Chorus:]
See, whoa, c’est la vie
Maybe something’s wrong with me
But, whoa, at least I am free, oh, oh, I am free
Yeah, whoa, c’est la vie
Maybe something’s wrong with me
But, hey, at least I am free, oh, oh, I am free

If you ask the church then I am no believer
Spend Sundays asleep I'm just another dreamer
Still tryna find my home sweet home, oh I, oh I, oh I
And I guess I ain’t too good for money neither
I got two left feet, no, I'm no Jackson either
Just tryna find my way someway, oh I, oh I, oh I

[Chorus:]
See, whoa, c’est la vie
Maybe something’s wrong with me
But, whoa, at least I am free, oh, oh, I am free
Yeah, whoa, c’est la vie
And maybe something’s wrong with me
But, whoa, at least I am free, oh, oh, I am free

Just tryna find my home sweet home, sweet home, sweet home, sweet home,
I drink a little more than recommended
'Cause this ain’t exactly what my heart expected

[Chorus:]
Whoa, c’est la vie
Maybe something’s wrong with me
But whoa, at least I am free, oh, oh, I am free
Yeah, whoa, c’est la vie
Maybe something’s wrong with me
But, whoa, at least I am free, oh, oh, I am free.

Whoa, c’est la vie
Maybe something’s wrong with me
Whoa, at least I am free, oh, oh, I am free
Whoa, c’est la vie
Maybe something’s wrong with me
Whoa, at least I am free, oh, oh, I am free
.

Rudimental ft. Emeli Sandé - Free 

02 dezembro 2014


as tuas mãos

ainda tento sobreviver após tudo o que te escrevi, tudo o que me escreveste e disseste, e toda a vida miúda que fomos levando sem nunca pressentirmos a grande raiva que um dia talvez rebentasse; hoje, que o futuro já confirmou parcialmente as razões vulgares da minha partida, não vale a pena fingir, à merda a hipocrisia, não é da desmesura que volto, mas de uma terra pequena e de um mar dócil, da avareza e do medo, e volto como quem rasteja ou implora a leitura destas linhas, com um nome na boca, devagar, para a proximidade dos teus passos na cozinha, para confirmar as tuas palavras, à mesa do chá, sobre a minha pequena loucura. E sorrirei da minha pequena loucura. Entardece. Talvez esteja velho e a morte já não me faça companhia. Olha, não consigo escrever mais




Rui Gomes, O Mensageiro Diferido

30 novembro 2014

diários

E eu que hoje só precisava de um abraço.
Ou de um valente abanão
ou de um boa notícia
ou de uma mensagem de força
ou de ter forças, simplesmente.
Ou de ouvir a tua voz.
Ou de conseguir dormir
ou de não chorar.
Ou de me esquecer
ou de te esquecer.
Ou de dar um grande foda.
Tanto faz.

27 novembro 2014

Amar não acaba. É como se o mundo estivesse a minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.

Clarice Lispector

16 novembro 2014

15 novembro 2014

13 novembro 2014

Diarios

Mais um ano sem ti
Mais um ano sem ti
Mais um ano sem ti
Mais um ano sem ti
Mais um ano sem ti
Mais um ano sem ti
Mais um ano sem ti
Sem os teus olhos,
Sem eu começar,
Pouco a pouco a reconhecer-me neles.
Mais um ano sem ti
Sem o teu sorriso
Mais um ano sem ti
Sem o teu conselho
Mais um ano sem ti
Sem o sorriso da mãe
Mais um ano sem ti
Sem a tua fatia da família
Mais um ano sem ti
Sem me veres crescer
Mais um ano sem ti
Sem te poder abraçar
Ou chatear
Sem te poder desapontar
Mais um ano sem ti
Sem tu também,
Começares a reconher-te nos meus olhos
Mais um ano sem ti.

Fodasse
Mais um ano sem ti
Todos temos as nossas dores.

Londres, 1 de Outobro de 2014

07 novembro 2014

Freedom vs love

Amor romântico e amor genuíno | Jetsunma Tenzin P…: http://youtu.be/gjV5zaGd0gA

30 outubro 2014

'Cause I may be bad, but i'm perfectly good at it!


Não entendo, apenas sinto.
Tenho medo de um dia entender
e deixar de sentir.

Clarice Lispector
Dia 29 de Novembro de 2014
Londres

14 outubro 2014

Algures no tempo

Algures no tempo, houve uma altura, (quiçá antes de ter amado), em que eu era corajosa. Algures nesse tempo não me acanhava por medo, nem por vergonha.
Algures no tempo, houve uma altura, (quiçá antes de te ter perdido), que eu dava o passo em frente, que saltar sem rede era muito mais divertido que assustador.
Algures no tempo, houve uma altura, (quiçá antes de me tornar mulher), em que eu nao era medrosa. Uma criança nunca é medrosa. Eu também não o era.
Algures no tempo, houve uma altura, (quiçá antes de ter falhado), em que eu confiava em mim. Acreditava em mim.
Conhecia-me e, gostava-me.
Ela confia em mim. Ela acredita em mim. Ela faz-me ter menos medo. Ela faz-me voltar algures no tempo, (quiçá ao tempo que eu sabia ser feliz).



Londres, 13 de Outubro de 2014

26 setembro 2014

uma carta aos meus antigos amores

(...) decidiu então de uma vez por todas desmembrar essas palavras coladas ao peito. Fez um balanço de todas as feridas abertas, bem como de todos os sonhos enforcados, e fez-se à estrada, aquela que já havia palmilhado previamente, mas agora, sem ter os pés a serem engolidos pela lama.
Não foi um caminho bonito o que percorreu, aliás, moralmente, pode dizer-se que deixou muito a desejar, traiu, magoou, ignorou, feriu, mentiu, julgou, gozou; mas foi esse o caminho que percorreu... E não o fez sozinha, arrastou todas as pessoas que conseguiu, seduziu-as com palavras, com promessas, essas, quase todas desleais, com gestos amorosos, esses, quase todos falsos, arranjou um considerável número de bonecos para servirem o seu gosto sádico de amor... Mas sim, foi assim que o fez, e realmente na altura fazia-lhe pouco ou nada diferença, pode dizer-se que tinha gesso no lugar do coração; um grande abraço de gesso, que por hora fazia-lhe o obséquio de segurar os cacos.
Então, se tinha o coração em cacos, como pode ter amado? Mas amou, amou, amou e amou. Mas não é disso que se trata esta sua carta, voltemos ao início.
Nunca soube muito bem identificar essa linha que as pessoas do mundo parecem ver entre a realidade e a fantasia, essa linha que nos tempos de hoje parece cingir e delinear o que é do que não é, e assim, por outras palavras, o que é certo do que é errado, no entanto obrigara-se a reconhece-la também como verdadeira, visto que para dançar neste mundo essa noção de senso comum é todavia imperativa; e por falar em senso comum, também esse deixara muito a desejar, foi perita em nunca ter de se desculpar, a encontrar sempre a frecha entre a culpa e a projeção. E como era perita também em projetar! Não havia nada no mundo que fosse sua ação particular, não, ao invés disso, amanhou-se sempre com a safa do "porque alguém fez", "porque alguém disse", "porque alguém me magoou", e não poucas vezes, essa tampouco foi a realidade. 
Era perita em muitas coisas, achava ela.
Bem, mas fundo, bem fundo, no fundo, ela sabia que era uma questão de tempo para que eventualmente lhe descobrissem a careca, então usava-se da sua beleza como arma secreta, a bem ou a mal sempre tivera um dom para agarrar as suas presas de fora para dentro, fisgava-lhes os sentidos, e verdade seja dita, não lhe fazia grande espécie se fosse a mal. E usou-a incessantemente até perder a cabeça, ou o amor-próprio, ou o discernimento social, ou a razão, ou o respeito, ou tantas outras coisas… Olhar para dentro e não reconhecer nada foi o breu mais breu que alguma vez presenciou! Nada, nada era dela, nada era ela. Nada. Que triste constatação.
Tornara-se uma má pessoa, e as más pessoas mais cedo ou mais tarde, ou mudam ou se perdem, e ela não se queria perder.
Perdeu tanto na vida, perdeu tanta vida, perdeu tantas pessoas na vida. Perdeu tanta vida! Que mais perdas seriam humanamente insuportáveis.
Esta carta, quase que arrancada de dentro das lágrimas, foi uma espécie um exorcismo para ela, pudesse ela desculpar-se de todas as suas falhas, de todas as suas mentiras, de todas as suas burlas e calúnias… Mas sabe que há certas atitudes que tomou na vida que ditaram mais do que esperava e por isso se tornaram indesculpáveis (ao contrário também não as perdoaria), e no entanto, é só isso que pode pedir, perdão! E aceitar, que mesmo isso possa nunca ser possível.
São fardos pesados as pessoas que magoou, vivem nas suas costas como parasitas que lhe sugam as forças e lhe cospem a vergonha na cara e o arrependimento nos olhos.
Sabia que para mudar o curso da sua vida, drásticas mudanças tinham de ser feitas, já lá ia o tempo que achava que mudar por outrem era mudar, que mudar sem mudar, ou sem querer mudar era mudar. Mais uma vez palpar o breu e sentir frio. Porque numa casa vazia a corrente de ar é forte e as madeiras apodrecem, e ela não queria apodrecer.
Fechou então a casa para obras, fechou as janelas, fechou as portas, fechou os livros, fechou as ranhuras, fechou as feridas, fechou o delírio, fechou o amor, fechou a dor, fechou as mãos, fechou a mente, fechou a memória, fechou o mau, fechou o corpo, fechou a alma, fechou tudo, envernizou o chão, desentupiu a chaminé, consertou a torneira que pingava demasiada água há demasiados anos, substitui as luzes fundidas, e finalmente pintou-a, com um tímido tom verde.
Ainda que lhe seja muito complicado não recorrer à mentira (apercebeu-se que a mentira estava mais intrínseca a si do que imaginava), e a manipulações (sempre se usou desse ludíbrio, para levar a sua à vante), o que mais lhe custava deixar era a raiva, todos os momentos em que o descontrolo comanda a mente, a dor do coração que se transforma em náusea, a náusea que se transforma em dores do coração, da sensação de montanha russa, do desespero sem fim, da questão sem resposta imediata, do oito ou oitenta, da solidão aterradora, da certeza da luta perdida, do dia sim, ou dia não, da persistente esperança, do pontapé no estômago insuportável, de amar erradamente e ser errada também, de não saber dizer basta, de andar às escuras na procura eterna, da paz faseada, do querer endoidecer ou morrer, de ser duas ou uma dividida. De rir e querer chorar… É sufocante o que tem de deixar, sem se perder a ela também no meio de tanta merda.

c'

24 setembro 2014

Quando toda a alegria for clandestina
Quem te dobrará a cada esquina?
Ruy Belo | quanto um homem morre

17 setembro 2014

fechar a porta ao mar

"Se eu voltasse para trás, onde estaríamos? Onde estávamos há um ano. Furiosos um com o outro por tementes do fim, preocupados com o que fazer da vida quando nada mais nos restasse. Não preciso preocupar-me – nada há já que temer. Isto é o fim. Mas, meu Deus, que farei deste desejo de amar? Porque escrevo “meu Deus”? – se para mim ele não existe. Se existe, foi ele que me incutiu a ideia da promessa e detesto-o porque o fez. (...)

Não prestámos atenção às sereias. Não tinham importância. Não temíamos morrer assim. Mas o ataque nunca mais acabava.(...) Maurice desceu a escada para ver se na cave estava alguém – tinha medo por mim, como eu tinha por ele. Eu sabia que ia acontecer alguma coisa.

Não havia dois minutos que ele saíra, rebentou uma bomba na rua. (...)Fui pela escada abaixo: estava cheia de destroços e corrimões partidos, e o vestíbulo era só confusão terrível. Primeiro não vi Maurice, e só depois vi o braço que saía de debaixo da porta. Toquei-lhe na mão: seria capaz de jurar que era uma mão morta. Quando duas pessoas se amaram não podem disfarçar a falta de ternura num beijo; como poderia eu ao tocar-lhe na mão, não ter reconhecido a vida, se alguma houvesse ainda?(...) Claro que agora sei que tudo foi nervosismo. Fui enganada. Ele não estava morto. É-se responsável por uma promessa histérica? A que promessa se falta? (...)

Ajoelhei no chão: sentia-me desesperada por ajoelhar, nem mesmo em criança o fizera – porque meus pais não acreditavam em orações, como eu não acredito. Não sabia o que havia de dizer. Maurice estava morto. Extinguira-se. (...) Meu Deus, dizia eu- e meu, meu porquê -, faz com que eu acredite. Não posso acreditar, não sei. Faz com que eu acredite. E dizia: sou uma prostituta, uma impostora, desprezo-me. Não tenho força de vontade. Faz-me acreditar. Apertei muitos os olhos, fechei as mãos com muita força, até não sentir senão as unhas magoando-me, e disse que queria acreditar. Dá-lhe vida, e acreditarei. Dá-lhe uma última oportunidade. Deixa-o ser feliz. Faz isto, e eu acredito. Mas não bastava. Acreditar não dói. E por isso acrescentei: eu amo-o, e dou-Te o que quiseres em troca da sua vida. E muito baixinho disse: deixá-lo-ei para sempre, se o deixares viver, e enterrava mais e mais as unhas até sentir a pele romper-se. E continuei: as pessoas podem amar-se sem se ver, amam-Te sem Te ver a vida inteira - e ele apareceu à porta e estava vivo, e eu pensei: a agonia de viver sem ele começa, e desejei-o outra vez definitivamente morto, debaixo da porta."


Graham Greene, in O Fim da Aventura

11 agosto 2014

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio 
E suportar é o tempo mais comprido. 

Sophia de Mello Breyner Andresen 

13 maio 2014

see-throughmee

Escrevi-te. Apaguei. Voltei a escrever. Que preciso de estar contigo, ao teu lado por umas horas. Num dos textos pus "de mãos dadas". Achei ridículo, não combina nada connosco, só se fosse para um braço de ferro. Noutro, invoquei o teu silêncio e a parcimónia de palavras que tanto me exaspera como me agrada, bem como a falta de juízo, de juízo nenhum, na verdadeira acepção da palavra: as coisas são como são e tu nunca me julgas. Se dá, dá. Se não, boa noite e um queijo. Que não durávamos mais de um dia de cama e mesa, dizes tu. Tens razão e no entanto as mãos dadas, os olhos fechados e um silêncio mútuo que não julga e não cobra, que induz ao descanso como uma almofada, uma boa almofada de penas de ganso da mongólia, revestida a seda da pérsia e trazida em mãos por reluzentes escravos núbios. Um silêncio de luxo, egípcio, raríssimo entre duas criaturas de deus. Insisto na parvoíce, "Preciso de ti agora", mas sem te querer assustar, acrescento que não quero nada de sexo, nem sequer te toco. Se quiseres, nem as mãos dadas. Procuro em mim todas as palavras que possam significar exactamente o seu contrário para não me delatar e corro-me de fio a pavio, como um programa de computador, que vai rejeitando os sinónimos de tudo aquilo que não me é permitido dizer. Explico-te que não almejo qualquer traição mas sei que não me acreditas e que sabes que será sempre mais um ardil para te enfiar a mão na braguilha e ta desapertar enquanto te finges de morto, como um cão bem ensinado. Tens razão, como sempre. Vais esticar os braços pra trás , bocejar e fingir que não te interesso porque tens sono e uma vida algures, que te espera enquanto eu te empato. Escrevo mais um lugar-comum que apago de imediato, por vergonha. Não temo o efeito do calão nem da rudeza das palavras, mas envergonho-me dos lugares-comuns tipo só te quero como amigo ou prometo que vamos só conversar, oferece-me um café. Na verdade, detesto café e detesto essa pedinchice novelesca que soa a manipulação bacoca e carente: sei-te mais esperto do que isso e eu, bem melhor do que isso. Não te peço como amigo porque já o és. E os amigos conversam, mesmo quando estão calados na sua introspecção de ouro, a tal das penas de pavão vindas do tesouro de mitridates ou lá o que foi que eu disse. Então porque te chamo calada e indago por onde andas? Não que vá atrás de ti, nunca fui: sabes isso. Mas percorro todos os caminhos dentro da minha cabeça para chegar a ti. Só vou quando me chamas e é este o santo e senha entre nós. quando fazes parecer que sou eu que me ofereço, mas na verdade sou eu que te obrigo a escolher, a teres a última palavra. Porque é essa que importa, a última palavra: a que decide se vou ou fico. Se corro para ti apenas dentro de mim ou se corro para ti para que entres em mim, ainda que quase sempre num futuro adiado. Por isso não acredites quando digo que de ti só quero amizade. Um almoço numa tasca manhosa e eu a jurar por entre o prato do dia e o vinho a martelo que um dia te provarei o contrário: tu sabes bem o quê. Tendo sempre para as figuras tristes, quando me olhas de certo ângulo, mas penso que essa questão seria ultrapassável. Ainda bem que apaguei tudo, que nem um rascunho guardei do que acabei de escrever e que tu nunca lerás nada disto. Delete, delete, shut down and go to sleep.

sofia vieira

08 maio 2014

diários

 La Vie d'Adèle (2013)
nessa noite chorou por M, triste e desesperadamente, como um recém nascido, entre convulsões e um choro que não cabem no peito. chorou como já não chorava há muito tempo. chorou, como se fosse a única coisa a fazer, como se chora um morto, como se chora a vida também;
nessa noite só existiram elas dentro daquele coração, daquele quarto, naquela cama.







 

06 maio 2014

'este dia este perverso dia que veio depois de ontem'

Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como 
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.




 Inês Lourenço

03 março 2014

Vou finalmente fechar o postigo, expirar a entrada mais feliz
do meu coração. É altura, José, de deixar as flores secarem,
o poço ganhar a escuridão que vem ameaçando há anos.


Soltarei de vez os canários e os pardais que prendi
naquela gaiola, junto ao coberto. Da mesma forma
que o farei contigo – segue o teu caminho e deixa que


este pobre velho que a vida baralhou encerre os seus pulmões
e procure noutra casa entradas maiores para o maior coração.








jorge reis-sá