26 setembro 2014

uma carta aos meus antigos amores

(...) decidiu então de uma vez por todas desmembrar essas palavras coladas ao peito. Fez um balanço de todas as feridas abertas, bem como de todos os sonhos enforcados, e fez-se à estrada, aquela que já havia palmilhado previamente, mas agora, sem ter os pés a serem engolidos pela lama.
Não foi um caminho bonito o que percorreu, aliás, moralmente, pode dizer-se que deixou muito a desejar, traiu, magoou, ignorou, feriu, mentiu, julgou, gozou; mas foi esse o caminho que percorreu... E não o fez sozinha, arrastou todas as pessoas que conseguiu, seduziu-as com palavras, com promessas, essas, quase todas desleais, com gestos amorosos, esses, quase todos falsos, arranjou um considerável número de bonecos para servirem o seu gosto sádico de amor... Mas sim, foi assim que o fez, e realmente na altura fazia-lhe pouco ou nada diferença, pode dizer-se que tinha gesso no lugar do coração; um grande abraço de gesso, que por hora fazia-lhe o obséquio de segurar os cacos.
Então, se tinha o coração em cacos, como pode ter amado? Mas amou, amou, amou e amou. Mas não é disso que se trata esta sua carta, voltemos ao início.
Nunca soube muito bem identificar essa linha que as pessoas do mundo parecem ver entre a realidade e a fantasia, essa linha que nos tempos de hoje parece cingir e delinear o que é do que não é, e assim, por outras palavras, o que é certo do que é errado, no entanto obrigara-se a reconhece-la também como verdadeira, visto que para dançar neste mundo essa noção de senso comum é todavia imperativa; e por falar em senso comum, também esse deixara muito a desejar, foi perita em nunca ter de se desculpar, a encontrar sempre a frecha entre a culpa e a projeção. E como era perita também em projetar! Não havia nada no mundo que fosse sua ação particular, não, ao invés disso, amanhou-se sempre com a safa do "porque alguém fez", "porque alguém disse", "porque alguém me magoou", e não poucas vezes, essa tampouco foi a realidade. 
Era perita em muitas coisas, achava ela.
Bem, mas fundo, bem fundo, no fundo, ela sabia que era uma questão de tempo para que eventualmente lhe descobrissem a careca, então usava-se da sua beleza como arma secreta, a bem ou a mal sempre tivera um dom para agarrar as suas presas de fora para dentro, fisgava-lhes os sentidos, e verdade seja dita, não lhe fazia grande espécie se fosse a mal. E usou-a incessantemente até perder a cabeça, ou o amor-próprio, ou o discernimento social, ou a razão, ou o respeito, ou tantas outras coisas… Olhar para dentro e não reconhecer nada foi o breu mais breu que alguma vez presenciou! Nada, nada era dela, nada era ela. Nada. Que triste constatação.
Tornara-se uma má pessoa, e as más pessoas mais cedo ou mais tarde, ou mudam ou se perdem, e ela não se queria perder.
Perdeu tanto na vida, perdeu tanta vida, perdeu tantas pessoas na vida. Perdeu tanta vida! Que mais perdas seriam humanamente insuportáveis.
Esta carta, quase que arrancada de dentro das lágrimas, foi uma espécie um exorcismo para ela, pudesse ela desculpar-se de todas as suas falhas, de todas as suas mentiras, de todas as suas burlas e calúnias… Mas sabe que há certas atitudes que tomou na vida que ditaram mais do que esperava e por isso se tornaram indesculpáveis (ao contrário também não as perdoaria), e no entanto, é só isso que pode pedir, perdão! E aceitar, que mesmo isso possa nunca ser possível.
São fardos pesados as pessoas que magoou, vivem nas suas costas como parasitas que lhe sugam as forças e lhe cospem a vergonha na cara e o arrependimento nos olhos.
Sabia que para mudar o curso da sua vida, drásticas mudanças tinham de ser feitas, já lá ia o tempo que achava que mudar por outrem era mudar, que mudar sem mudar, ou sem querer mudar era mudar. Mais uma vez palpar o breu e sentir frio. Porque numa casa vazia a corrente de ar é forte e as madeiras apodrecem, e ela não queria apodrecer.
Fechou então a casa para obras, fechou as janelas, fechou as portas, fechou os livros, fechou as ranhuras, fechou as feridas, fechou o delírio, fechou o amor, fechou a dor, fechou as mãos, fechou a mente, fechou a memória, fechou o mau, fechou o corpo, fechou a alma, fechou tudo, envernizou o chão, desentupiu a chaminé, consertou a torneira que pingava demasiada água há demasiados anos, substitui as luzes fundidas, e finalmente pintou-a, com um tímido tom verde.
Ainda que lhe seja muito complicado não recorrer à mentira (apercebeu-se que a mentira estava mais intrínseca a si do que imaginava), e a manipulações (sempre se usou desse ludíbrio, para levar a sua à vante), o que mais lhe custava deixar era a raiva, todos os momentos em que o descontrolo comanda a mente, a dor do coração que se transforma em náusea, a náusea que se transforma em dores do coração, da sensação de montanha russa, do desespero sem fim, da questão sem resposta imediata, do oito ou oitenta, da solidão aterradora, da certeza da luta perdida, do dia sim, ou dia não, da persistente esperança, do pontapé no estômago insuportável, de amar erradamente e ser errada também, de não saber dizer basta, de andar às escuras na procura eterna, da paz faseada, do querer endoidecer ou morrer, de ser duas ou uma dividida. De rir e querer chorar… É sufocante o que tem de deixar, sem se perder a ela também no meio de tanta merda.

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24 setembro 2014

Quando toda a alegria for clandestina
Quem te dobrará a cada esquina?
Ruy Belo | quanto um homem morre

17 setembro 2014

fechar a porta ao mar

"Se eu voltasse para trás, onde estaríamos? Onde estávamos há um ano. Furiosos um com o outro por tementes do fim, preocupados com o que fazer da vida quando nada mais nos restasse. Não preciso preocupar-me – nada há já que temer. Isto é o fim. Mas, meu Deus, que farei deste desejo de amar? Porque escrevo “meu Deus”? – se para mim ele não existe. Se existe, foi ele que me incutiu a ideia da promessa e detesto-o porque o fez. (...)

Não prestámos atenção às sereias. Não tinham importância. Não temíamos morrer assim. Mas o ataque nunca mais acabava.(...) Maurice desceu a escada para ver se na cave estava alguém – tinha medo por mim, como eu tinha por ele. Eu sabia que ia acontecer alguma coisa.

Não havia dois minutos que ele saíra, rebentou uma bomba na rua. (...)Fui pela escada abaixo: estava cheia de destroços e corrimões partidos, e o vestíbulo era só confusão terrível. Primeiro não vi Maurice, e só depois vi o braço que saía de debaixo da porta. Toquei-lhe na mão: seria capaz de jurar que era uma mão morta. Quando duas pessoas se amaram não podem disfarçar a falta de ternura num beijo; como poderia eu ao tocar-lhe na mão, não ter reconhecido a vida, se alguma houvesse ainda?(...) Claro que agora sei que tudo foi nervosismo. Fui enganada. Ele não estava morto. É-se responsável por uma promessa histérica? A que promessa se falta? (...)

Ajoelhei no chão: sentia-me desesperada por ajoelhar, nem mesmo em criança o fizera – porque meus pais não acreditavam em orações, como eu não acredito. Não sabia o que havia de dizer. Maurice estava morto. Extinguira-se. (...) Meu Deus, dizia eu- e meu, meu porquê -, faz com que eu acredite. Não posso acreditar, não sei. Faz com que eu acredite. E dizia: sou uma prostituta, uma impostora, desprezo-me. Não tenho força de vontade. Faz-me acreditar. Apertei muitos os olhos, fechei as mãos com muita força, até não sentir senão as unhas magoando-me, e disse que queria acreditar. Dá-lhe vida, e acreditarei. Dá-lhe uma última oportunidade. Deixa-o ser feliz. Faz isto, e eu acredito. Mas não bastava. Acreditar não dói. E por isso acrescentei: eu amo-o, e dou-Te o que quiseres em troca da sua vida. E muito baixinho disse: deixá-lo-ei para sempre, se o deixares viver, e enterrava mais e mais as unhas até sentir a pele romper-se. E continuei: as pessoas podem amar-se sem se ver, amam-Te sem Te ver a vida inteira - e ele apareceu à porta e estava vivo, e eu pensei: a agonia de viver sem ele começa, e desejei-o outra vez definitivamente morto, debaixo da porta."


Graham Greene, in O Fim da Aventura