13 março 2011

Terceira Carta

Que vai ser de mim, e que queres tu que eu faça? Estou longe de tudo o que futurei! Contava que me escrevesses de todas as terras por onde passasses e que as tuas cartas fossem muito grandes. Cuidava que desses alento à minha paixão com a esperança de tornar a ver-te; que uma confiança completa na tua fidelidade me trouxesse algum sossego, e que assim eu ficasse numa situação mais aliviada sem dores ainda maiores. Chegara até a formar uns leves projetos de empregar todos os esforços de que fosse capaz para me sarar, se viesse a ter a certeza de que me esqueceras de todo.

O teu afastamento, alguns rebates de devoção; o receio de estragar sem remédio a pouca saúde que me resta com tantas vigílias e apoquentações; a minguada esperança no teu regresso, a frieza da tua afeição e dos teus últimos adeuses, a tua partida fundamentada em pretextos fracos, e mil outras razões boas demais e demasiado simples pareciam oferecer-me um amparo firme, se dele necessitasse. Só e tendo de batalhar comigo mesma, mal podia desconfiar de todas as minhas fraquezas, nem adivinhar tudo o que hoje padeço.

Pobre de mim! Digna de lástima que sou por não poder partilhar contigo as minhas penas e ser eu só a desgraçada! Tira-me a vida este pensamento. Morro de desgosto ao imaginar que nunca gozaste verdadeiramente os nossos enlevos. Sim, conheço agora a má fé de todas as tuas intenções. Atraiçoavas-me todas as vezes que me dizias que o teu maior contentamento era estar a sós comigo. Somente às minhas importunações devo os teus transportes e afagos... Formaste de caso pensado a intenção de me entontecer. Consideraste a minha paixão uma vitória tua sem que o teu coração nela entrasse em coisa nenhuma. És assim tão vil e tens tão pouca delicadeza que não soubeste tirar melhor proveito dos meus arrebatamentos? E como é possível que com tanto amor eu não conseguisse dar-te uma felicidade perfeita? Lamento, por amor de ti apenas, as venturas sem par que perdeste. Que mau sestro te levou a não as querer gozar? Ai, se as provaras, verias que eram mais gostosas que a satisfação de me haveres seduzido, e reconhecerias que se é mais feliz e que é bem mais agradável amar com ardor do que ser amado.

Não sei já o que sou, nem o que faço, nem o que quero. Espedaçam-me impulsos desencontrados. Alguém poderá imaginar um estado tão lastimoso? Amo-te doidamente e quero-te também que nem me atrevo a desejar que em ti se renovem arrebatamentos iguais aos meus. Morria ou acabaria por morrer de mágoas se estiver certa de que não podias ter descanso, que a tua vida era só desassossego e desvairo, que passavas o tempo a chorar e que tudo te causava desgosto. Se mal posso com as minhas penas, como agüentaria a dor de ver as tuas, que sinto mil vezes mais?

Apesar de tudo não tenho ânimo para desejar que não me tragas no pensamento. E, para falar com franqueza, tenho ciúmes pavorosos de quanto possa dar-te contentamento e diz respeito ao teu coração, e do que te cause agrado em França.

Não sei por que te escrevo. Vejo bem que só te mereço compaixão e não quero a tua compaixão. Desprezo-me a mim mesma quando considero em tudo o que te sacrifiquei. Perdi a reputação, provoquei as iras dos meus, os rigores das leis deste Reino para com as freiras e a tua ingratidão que me parece o pior de todos os males.

E sem embargo sinto que os meus remorsos não são verdadeiros, que do íntimo do coração desejava ter corrido, por amor de ti, perigos ainda maiores e que é para mim um funesto prazer haver arriscado por ti a vida e a honra. Não devia eu dar-te o que tivesse de mais valioso? E não é justa a minha satisfação por ter procedido como procedi? Afigura-se-me que ainda não estou bastante satisfeita com os meus desgostos nem com o meu demasiado amor, embora não possa, ai de mim, iludir-me bastante para estar contente contigo.

Vivo ainda, pérfida que sou, e faço tanto para conservar a vida como para a perder. Ai, morro de vergonha! Mas então este desespero só é verdadeiro nas minhas cartas? Se te amasse tanto como te tenho dito mil vezes, não era para estar morta há muito tempo? Enganei-te e afinal de contas és tu quem tem razão de queixa contra mim. Ai, por que não te lamentas, meu bem?
 
Vi-te partir, já não posso esperar que voltes e continuo a respirar. Atraiçoei-te, peço perdão. Mas não mo dás. Trata-me com mais rigor. Não julgues os meus sentimentos bastante sinceros. Sê mais custoso de contentar. Manda-me morrer de amor por ti. Imploro-te que me dês algum adjutério para vencer a minha debilidade de mulher e acabar com tantas irresoluções, se preciso for por um ato de verdadeiro desespero. Um fim trágico obrigava-te com certeza a pensar muitas vezes em mim e ficarias a crer mais em minha memória. E talvez te compungisse mais uma morte fora do comum. Não valia mais do que a situação a que me reduziste?
 
Adeus, quem dera que não te houvesse conhecido! Pobre de mim, sei bem que estou a mentir e reconheço que neste mesmo instante em que te escrevo sou mais feliz no meio das minhas desventuras, amando-te, do que seria se não te houvesse conhecido! Sujeito-me, pois, sem me queixar da minha má sorte já que não quiseste torná-la melhor.

Adeus, promete lastimar-me carinhosamente, se eu morrer de mágoa, e que ao menos o desconforme desta minha paixão te desgoste e afaste de tudo. Esta consolação me chega e se é forçoso que te perca para sempre, quisera ao menos não te deixar a outra. Seria uma grande crueldade tua servires-te do meu infortúnio para te fazeres amar e gabares-te de que acendeste a maior paixão que houve no mundo.

Adeus, ainda uma vez. Escrevo-te cartas muito grandes, não tenho contemplação por ti, perdoa-me. Quero crer que terás alguma indulgência para com uma pobre doida que não o era, bem sabes, antes de te amar.

Adeus, parece-me que te falo demais do estado lastimoso em que me encontro. Mas agradeço-te do íntimo do coração os tormentos que me deste aborreço o descanso em que vivi até ao momento de te conhecer.

Adeus, a minha paixão cresce a todo o instante. Ai, quantas coisas para te dizer!

Mariana Alcofarado, Carta Portuguesas

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