30 setembro 2013

a alegria mansinha que traz o cheiro a terra molhada

E o pior é pensar onde havemos de arranjar forças para no dia seguinte continuar a fazer o que fizemos na véspera e ainda em tantos outros dias já passados, onde encontraremos forças para tantas diligências imbecis, para mil e um projectos que não conduzem a nada, para as tentativas de vencer uma acabrunhante necessidade, tentativas que acabam sempre por abortar, e tudo isso para nos capacitarmos uma vez mais de que o destino é imutável e que o melhor é conformarmo-nos em ter de cair todas as noites da muralha abaixo, sob a angústia desse dia seguinte, sempre mais instável e sórdido.


É talvez a idade que surge, traidora, e nos ameaça com o pior. Já não existe dentro de cada um de nós música suficiente para fazer dançar a vida, aí está. Toda a juventude nos abandonou para ir morrer no fim do mundo, num silêncio de verdade. Para onde ir agora, pergunto, depois de não possuirmos em nós a soma bastante de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Precisamos escolher: mentir ou morrer. E eu nunca consegui matar-me.


Louis-Ferdinand Céline

Diários

A queimadura purpura que reside na pele depois desta tertúlia.
Faz-me padecer de todas as dores que ainda não senti. 

28 setembro 2013

Reinventar a perfeição da vida que é a do seu milagre e estupidez. Calar de mim a voz do meu excesso e ser todo no meu nada. E esquecer, esquecer o antes e o depois, sobretudo o que está antes e depois de todos os depois e antes. 

Vergílio Ferreira, até ao fim

25 setembro 2013

Maya Deren, Meshes of the Afeternoon (1943)















"Há uma desproporção enorme entre a minha urgência e a lentidão de tudo."
Vergílio Ferreira, até ao fim










23 setembro 2013

até sempre

Vive-se quando se vive a substância intacta 
em estar a ser sua ardente   harmonia 
que se expande em clara atmosfera 
leve e sem delírio ou talvez delirando 
no vértice da frescura onde a imagem treme 
um pouco na visão intensa e fluida(...)



António Ramos Rosa















Ladies who have fallen into disrepute


21 setembro 2013

diários

esta dor esvicerante. corroi-me o cheiro dela ainda nos meus dedos. estou tão cansado. podia morrer agora que tenho certo que esta dor acompanhar-me-ia para a cova. que merda.
Daughter, Love

eram espinhos #2

viu uma rosa à beira do caminho, era bela, vermelho sangue, não conseguiu dar nem mais um passo em frente. quis tocá-la, tocou-a, picou-se, sangrou, doeu, chorou; deu três passos atrás, quis tocá-la novamente, tocou-a, picou-se, doeu, chorou; deu quatro passos atrás, quis tocá-la ainda outra vez, tocou-a, picou-se, doeu, chorou; - e diz que a ama. não deu nunca mais um passo em frente.

20 setembro 2013

dias confusos

"ele disse: acredito na paixão inocente, naquela que se pode viver em segredo, que não magoa mais do que a nós próprios que a sentimos.

ela disse: às vezes penso que o destino cruza caminhos em tempos errados. desejamos pessoas nos tempos errados. sentimos saudades quando já é tarde.
ele disse: talvez porque precisamos de ser avisados constantemente que podemos mudar de trajectória.

ela disse: talvez porque mesmo que sentados aqui, para sempre, possamos acreditar que podíamos estar em outro lugar, e sermos completamente diferentes."


Mia Couto

19 setembro 2013

Saudade é solidão acompanhada
é quando o amor ainda não foi embora, 
mas a amada já ...

Saudade é amar um passado 
que ainda não passou, 
é recusar um presente que nos magoa, 
é não ver o futuro que nos convida ... 

Saudade é sentir que existe 
o que não existe mais ... 

Saudade é o inferno dos que perderam, 
é a dor dos que ficaram para trás, 
é o gosto de morte na boca dos que continuam ... (...)


pablo neruda

17 setembro 2013

Fight Club











/Vício (do latim "vitium", que significa "falha" ou "defeito" ) é um hábito repetitivo que degenera ou causa algum prejuízo ao viciado e aos que com ele convivem.
Amanheci em cólera.
Não, não, o mundo não me agrada.

Clarice Lispector

13 setembro 2013

brincávamos a cair nos 
braços um do outro, como faziam 
as actrizes nos filmes com o marlon 
brando, e depois suspirávamos e ríamos 
sem saber que habituávamos o coração à 
dor. queríamos o amor um pelo outro 
sem hesitações, como se a desgraça nos 
servisse bem e, a ver filmes, achávamos que 
o peito era todo em movimento e não 
sabíamos que a vida podia parar um 
dia. eu ainda te disse que me doíam os 
braços e que, mesmo sendo o rapaz, o 
cansaço chegava e instalava-se no meu 
poço de medo. tu rias e caías uma e outra 
vez à espera de acreditares apenas no que 
fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, 
quando percebíamos que o mundo era 
feito de distância e tanto tempo vazio, tu 
ficavas muito feminina e abandonada e eu 
sofria mais ainda com isso. estavas tão 
diferente de mim como se já tivesses 
partido e eu fosse apenas um local esquecido 
sem significado maior no teu caminho. tu 
dizias que se morrêssemos juntos 
entraríamos juntos no paraíso e querias 
culpar-me por ser triste de outro modo, um 
modo mais perene, lento, covarde. Eu 
amava-te e julgava bem que amar era 
afeiçoar o corpo ao perigo. caía eu 
nos teus braços, fazias um 
bigode no teu rosto como se fosses o 
marlon brando. eu, que te descobria como se 
descobrem fantasias no inferno, não 
queria ser beijado pelo marlon brando e 
entrava numa combustão modesta que, às 
batidas do meu coração, iluminava o meu 
rosto como lâmpada falhando 

a minha mãe dizia-me, valter tem cuidado, não 
brinques assim, vais partir uma perna, vais 
partir a cabeça, vais partir o 
coração. e estava certa, foi tudo verdade 

valter hugo mãe

sexta-feira,13

da minha janela vê-se uma espécie muito rara de angústia
tem o corpo que não ousei que me fosse
usa o amor como se fosse a origem da sede
e sossega-se contra o peito da alvorada

da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida

da minha janela não se vê mais nada
ouve-se o silêncio contra mim
e chove morte contra os vidros
por dentro como soa o fim

Pedro Sena-Lino

12 setembro 2013

à sétima badalada o coração congelou

Cafe Muller, Pina Bausch














És uma ruína fantástica. Eu também.
(...)

Lembro-te-me.


João Miguel Fernandes Jorge

10 setembro 2013

You will hear thunder and remember me.
And think: she wanted storms.


Anna Akhmatova
a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

Samuel Beckett

02 setembro 2013

Heimweh

(...) ao mar, pois, eu me fiz, mar alto aberto.

O Canto de Ulisses, Divina Comédia

o coração colado à boca colada à alma

(...)
Não ranjo. Não sangro. Não choro. Não peço. Não morro.
A não ser que me sobrevenha uma embolia ao baralho. Ao caralho.
Por isso, conservo-me em álcool. Como os miúdos fazem às cobras.
O formol é para os Deuses.


Miguel Martins