Quem és? Pergunto ao desejo. Respondeu: lava. Depois pó, Depois nada.
Hilda Hilst
My fault, my failure, is not in the passions I have, but in my lack of control of them. Jack Kerouac
29 dezembro 2012
28 dezembro 2012
25 dezembro 2012
Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo?
Este mundo é muito misturado.
Guimarães Rosa
Este mundo é muito misturado.
Guimarães Rosa
24 dezembro 2012
23 dezembro 2012
Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado,
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu amor.
Parto amanhã.
Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo
doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.
Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos con-
tornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.
Não basta olhar a amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.
Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz dis-
tante, entre ruídos de música e interferências aladas.
Não basta ser feliz.
Não basta a Primavera.
Não basta a solidão.
Daniel Filipe
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu amor.
Parto amanhã.
Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo
doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.
Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos con-
tornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.
Não basta olhar a amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.
Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz dis-
tante, entre ruídos de música e interferências aladas.
Não basta ser feliz.
Não basta a Primavera.
Não basta a solidão.
Daniel Filipe
22 dezembro 2012
20 dezembro 2012
19 dezembro 2012
17 dezembro 2012
14 dezembro 2012
13 dezembro 2012
11 dezembro 2012
há muito tempo, no começo de uma noite de árvores já despidas, agitadas pelo vento de setembro, imaginei a tua vinda. havia uma indefinida inquietação na natureza, como se estivesse para se aproximar uma grande tempestade, e o horizonte colorira-se de tons assustadores. a electricidade tinha faltado, e havia velas tremelicando sobre as mesas, um certo sentimento de frio que nos fazia aproximar-nos das camas, enrolarmo-nos dentro das camisolas, como se esse fosse o preciso começo de mais um inverno, com tudo o que de irremediavelmente perdido ficava para trás, sobretudo os rostos iluminados pela intensa exaltação da luz. eu aquecia as mãos na fornalha do cachimbo, acariciava as folhas do livro que me tinha acompanhado durante todo esse mês, sentia-me lavado e com uma indescritível paz na alma. pela primeira vez na vida sabia-me completamente entregue a mim próprio, tal como as colinas que vira ao fim da tarde, espalhadas ao sol, amarelas e solitárias, sem qualquer sentido que não fosse multiplicarem-se até aos confins da minha retina, redondas e sempre iguais a si mesmas, perdurando de dia para dia e de século para século.mas, dizia-te, nesse momento prenunciei a tua vinda. julguei mesmo saber quando me chamaste pela primeira vez, talvez num desses muitos sons ambíguos que tem o estalar de uma casa, e me disseste: prepara o caminho para o meu rosto. abre-te de par em par, como se fosses uma enorme folha de uma planta carnívora, distende-te todo como um animal dócil e devorador, apresta-te a teres os meus pés nus sobre o teu peito, os meus lábios elevando-se ao longo do teu sexo como as pétalas de uma flor vermelha de sangue.
assustas-me por me quereres assim, e por te acercares tão inesperadamente neste fim de dia de outono, como se uma nudez indecisa se aproximasse do meu leito sem eu lhe poder definir os contornos do olhar, pensei. sabes, nesta altura do ano os patos bravios migratórios já se encontram todos sobre o lago, e um tal anúncio pode causar-lhes a morte, ou pelo menos uma partida precipitada, e o sangue das suas asas ficar espalhado no meu peito. interrompes um pacto antigo que fiz com esta vida cómoda: a de poder sobreviver em troca de um pouco de ternura, das refeições às horas, do meu cachimbo pousado sobre o estirador, entre a elegância das lombadas dos meus livros, na certeza de estar construindo a obra que esperam de mim. tu vens de súbito tratar-me como um rapaz, abrir-me as cortinas de veludo do teu púbis com um sorriso azul, dizer-me que tudo começa agora, que deixaste crescer os cabelos para mim, e que eles te provocam uma sensação de crina nas nádegas, que queres correr.como pudeste saber que era eu a pessoa certa? e sê-lo-ei? como intentas possuir a minha alma, assim por antecipação? como pudeste adivinhar que atravessei desertos, que no meu palato tenho a secura de cactos cujos espinhos se me enterram nas gengivas quando sorrio? não receias a minha voracidade, este apetite por te sugar toda, desde a saliva ao sangue, esta vontade de morte que me acomete, de te cortar pelo sexo, de te abrir como a um brinquedo, atirando as peças para os quatro cantos do quarto? eu sei, marcaste encontro comigo num qualquer hotel, solitário e frio, onde chegarei sem bagagem e segurando com uma mão de suor o meu cartão de crédito. não teremos música, nem uma chávena de chá, nem interessará se lá fora chove ou se no passeio passa a figura da pessoa que outrora foi minha mãe. é suposto eu ter crescido, e não estou aqui nem para me explicar nem para finalmente te conhecer. estou aqui porque tu me insinuaste que querias possuir o meu olhar, com uma determinação clandestina. não te esqueças de fechar os vidros, porque estamos numa cave, e pode ser que lá fora seja veneza, que as vagas se agitem e venham entornar-se aqui dentro.pode acontecer que a cama se transforme numa jangada e tu consigas matar-me, dar-me descanso no alto mar, quando chegar a hora em que o sol ruboresce as asas dos anjos que trepam, expeditos, às cúpulas das igrejas. partir assim deste sítio terá de ser forçosamente inesquecível.
Vítor Oliveira Jorge
09 dezembro 2012
Às vezes paro à porta com o olhar perdido e habituado ao silêncio, há mais desertos ainda, dias e morte noutros olhos. Com a garganta habituada à sede,com os pés às feridas, saio para a rua e já não há umbrais. Ando um dia, passo outro, acabo uma semana de vidros partidos e tosse mais velha. Hoje parece que sempre choveu sobre mim, e não me importa se a chuva já não se parece ao esquecimento e apenas deixa charcos, paredes mais sujas e fuligem e tristeza nos olhos de rímel, ainda tenho sede e não me importa voltar às coisas más e aos velhos tugúrios à procura de algo que não encontro nem recordo, que costuma principiar por um encontro, talvez por outra palavra e corre o perigo de crispar-se até à forma da folha da faca. Às vezes tudo é tão estranho que não basta continuar a andar.
Alfonso Barrocal
04 dezembro 2012
02 dezembro 2012
30 novembro 2012
28 novembro 2012
Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita comigo que este tempo ande. Lá fora são as casas, vive gente à luz de um candeeiro, o som que nos chega apagado pela distância só denuncia o nosso silêncio interrompido. Ajuda-me, faremos o inventário das coisas menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo. Fica, não te aproximes, nenhum dia é menos sombrio, e quando anoitecer vamos ver as árvores cercando a casa.
Helder Moura Pereira
Helder Moura Pereira
27 novembro 2012
Tudo isto já beijou a dúvida na boca. Tudo isto já fingiu ter tempo para regressar. Tudo isto já supôs que agora seria diferente. Tudo isto já se empenhou em derrotar seis ou sete pessoas. Tudo isto já foi roupa a secar e a proximidade da noite. Tudo isto já encantou o estrangeiro. Tudo isto já se sentou à espera de ver. Tudo isto já rasgou o que não interessava e o que demais interessava. Tudo isto já despiu a vergonha. Tudo isto já foi de avião à sua lucidez futura. Tudo isto já enfrentou o desespero com duas moedas apenas. Tudo isto já se cansou de buscar modos de dizer. Tudo isto já foi mercúrio. Tudo isto já caiu a meio da noite sem que ninguém lhe tocasse. Tudo isto já deu o nome errado. Tudo isto já pediu para trocar tabaco. Tudo isto já se intrometeu. Tudo isto já foi demais para caber num corpo. Tudo isto já mordeu os lábios por lhe sobrar o desejo. Tudo isto já comentou as notícias terríveis a mais de cinco metros de distância. Tudo isto já presenciou a morte e o nascimento. Tudo isto já permitiu que entrasse. Tudo isto já sentiu os nervos como cordas. Tudo isto já deixou alguém adormecer. Tudo isto já inalou o ópio suave do reencontro. Tudo isto já percebeu que pode acontecer.
Vasco Gato
Vasco Gato
Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos. Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio, linhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atravessas e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da devolução.Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar, tudo numa árvore. Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a medida exacta do meu desejo. Sou um animal. Necessito diariamente da transfusão de uma enorme quantidade de calor. Tocas-me?
Vasco Gato
25 novembro 2012
24 novembro 2012
21 novembro 2012
18 novembro 2012
16 novembro 2012
16/11/1922 - 18/06/2010
Que monstruosas coisas é capaz de gerar o cérebro.
José Saramago, Ensaio Sobre a Lucidez
José Saramago, Ensaio Sobre a Lucidez
15 novembro 2012
14 novembro 2012
13 novembro 2012
08 novembro 2012
07 novembro 2012
É provável, sim, é provável que ainda a ame, que ame nela o que antes soube amar, a cabeleira escura, o ventre inquietante, o peito guardando a alegria de um coração solar. Os meus olhos profundos sempre a contemplaram visivelmente perturbados, até mesmo perdidos, quando ela caminhava abrindo rasgões no ar que se fechavam depois à sua passagem para cingir-lhe os braços, os seios e as ancas. A sua boca tremeu na minha com a sede da música e o seu contacto era o do musgo e o da cinza, e dessas cerejas maduras pelo lume de maio. Não sei se estou a endeusá-la ou se ela é uma deusa. Não sei mesmo se conseguirei dizer dela quanto gostaria. Ela está tão perto do meu corpo que a minha pele se acende, e tão longe dos meus olhos que só poderei lembrá-la. Fizémos muito amor e sempre muitas vezes, sem que entre nós esvoaçasse uma minima sombra. Quando ficávamos tristes, é que o espanto crescia até ao minuto primeiro da tristeza. É uma mulher maravilhosa, o seu nome que importa?, tão frágil como um menino inocente, assim desamparada, correndo para a loucura como antes correu para os meus braços. Nenhuma paixão poderia doer-me mais. Nenhuma ternura poderia mimar-me tanto. O meu poema é uma casa erguida com a sua beleza, onde ela entra e de onde sai e algumas vezes se demora. Poderei dizer que o meu coração é uma sala vazia? A sua recordação ainda me perturba e disso tenho consciência. Amo-a ainda, ou não a amo já, é impossível dizer. Mas é provável, sim, é provável que ainda a ame.
joaquim pessoa
06 novembro 2012
05 novembro 2012
31 outubro 2012
28 outubro 2012
o descontrolo dos sonhos.
Então vens e me chega e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque assim que és...
"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.”
Caio Fernando Abreu
21 outubro 2012
16 outubro 2012
09 outubro 2012
08 outubro 2012
02 outubro 2012
01 outubro 2012
27 setembro 2012
Jane Henderson: I... I used to make long speeches to you after you left. I used to talk to you all the time, even though I was alone. I walked around for months talking to you. Now I don't know what to say. It was easier when I just imagined you. I even imagined you talking back to me. We'd have long conversations, the two of us. It was almost like you were there. I could hear you, I could see you, smell you. I could hear your voice. Sometimes your voice would wake me up. It would wake me up in the middle of the night, just like you were in the room with me. Then... it slowly faded. I couldn't picture you anymore. I tried to talk out loud to you like I used to, but there was nothing there. I couldn't hear you. Then... I just gave it up. Everything stopped. You just... disappeared. And now I'm working here. I hear your voice all the time. Every man has your voice.
Paris,Texas (1984)
Paris,Texas (1984)
26 setembro 2012
20 setembro 2012
16 setembro 2012
13 setembro 2012
03 setembro 2012
02 setembro 2012
01 setembro 2012
-Hélène, já te disse cinquenta vezes que o meu trabalho sou eu próprio. Não posso escolher não ser aquilo que sou. Mas tal como sou, Amo-te. Só tenho um desejo, é o de partilhar tudo contigo.
- Sou útil à tua felicidade - disse Hélène -, mas não te sou necessária para viver.
-Quem é necessário a quem? - disse Paul. - Sempre se viveu.
-Vive-se - Disse Hélène.
Simone de Beauvoir n'O Sangue dos Outros
- Sou útil à tua felicidade - disse Hélène -, mas não te sou necessária para viver.
-Quem é necessário a quem? - disse Paul. - Sempre se viveu.
-Vive-se - Disse Hélène.
Simone de Beauvoir n'O Sangue dos Outros
31 agosto 2012
20 agosto 2012
like a game
O sangue Dos Outros | Simone de Beauvoir
14 agosto 2012
Se você procura alguém coerente, sensata, politicamente correta, racional, cheia de moralismo… Equeça-me! Se você sabe conviver... com pessoas intempestivas, emotivas, vulneráveis, amáveis, que explodem na emoção: acolha-me.
Clarice Lispector
#(Sou fogo, sou errada, sou horrível e cruel. Amo demais, sufoco, transpiro desejo. Quero mais, sempre mais. Muito mais. Fascinada, transloucada. A lucidez nunca me acompanhou, a não ser por breves momentos. Ando torta, aos tropeções. Choro muito. Vivo muito. Quero mais. Muito mais. É o abismo que me suga, para qualquer lado, minhas forças nada podem contra ele, sou-lhe eterna submissa. Sou intensa, sou cansativa e esgotante e frágil.)
Clarice Lispector
#(Sou fogo, sou errada, sou horrível e cruel. Amo demais, sufoco, transpiro desejo. Quero mais, sempre mais. Muito mais. Fascinada, transloucada. A lucidez nunca me acompanhou, a não ser por breves momentos. Ando torta, aos tropeções. Choro muito. Vivo muito. Quero mais. Muito mais. É o abismo que me suga, para qualquer lado, minhas forças nada podem contra ele, sou-lhe eterna submissa. Sou intensa, sou cansativa e esgotante e frágil.)
13 agosto 2012
11 agosto 2012
08 agosto 2012
07 agosto 2012
06 agosto 2012
04 agosto 2012
03 agosto 2012
31 julho 2012
30 julho 2012
1) I walk down the street.
There is a deep hole in the sidewalk
I fall in.
I am lost... I am hopeless.
It isn't my fault
It takes forever to find a way out
2) I walk down the same street
There is a deep hole in the sidewalk.
I pretend I don't see it.
I fall in again.
I can't believe I'm in the same place.
But it isn't my fault.
It still takes a long time to get out
3) I walk down the same street
There is a deep hole in the sidewalk
I see it is there.
I still fall in ... it's a habit
My eyes are open
I know where I am
It is my fault.
I get out immediately.
4) I walk down the same street
There is a deep hole in the sidewalk
I walk around it.
5) I walk down another street.
Tibetian book of living and dying
There is a deep hole in the sidewalk
I fall in.
I am lost... I am hopeless.
It isn't my fault
It takes forever to find a way out
2) I walk down the same street
There is a deep hole in the sidewalk.
I pretend I don't see it.
I fall in again.
I can't believe I'm in the same place.
But it isn't my fault.
It still takes a long time to get out
3) I walk down the same street
There is a deep hole in the sidewalk
I see it is there.
I still fall in ... it's a habit
My eyes are open
I know where I am
It is my fault.
I get out immediately.
4) I walk down the same street
There is a deep hole in the sidewalk
I walk around it.
5) I walk down another street.
Tibetian book of living and dying
love,
Gina
27 julho 2012
26 julho 2012
17 julho 2012
- Vocês estão aqui para errar. Vamos lá cambada! Acordar o corpo! Não é que seja apenas permitido errar - vocês aqui são estimulados ao erro! Vamos errar nos dois sentidos. Primeiro, no sentido óbvio: não há preocupação em acertar. Depois, no sentidos mais poético: errar significa também vaguear, movimentar-se sem destino definido. Ou seja: vamos pisar o desconhecido, meter a não no mistério. Vamos, sem medo, todos juntos, buscar o inesperado. Errância!
O Beco do Pânico | Clovis Levi
O Beco do Pânico | Clovis Levi
12 julho 2012
10 julho 2012
09 julho 2012
08 julho 2012
Aí residia a sua força e a sua virtude, aí era invergável e incorruptível, aí o seu carácter era firme e rectilíneo. No entanto, esta virtude trazia estreitamente ligados a si também o seu sofrimento e o seu destino.
Acontecia-lhe o que a todos acontece: aquilo que por impulso da sua mais íntima natureza demandava e em que se empenhava com a maior pertinácia, era-lhe concedido, mas ultrapassando aquilo que ao homem é benéfico. O que começava por ser sonho e felicidade, redundava em amargo destino. O homem do poder destói-se pelo poder, o homem do dinheiro, pelo dinheiro, o subserviente pelo servir, o sequioso de prazer pela luxúria.
Hermann Hesse, O Lobo das Estepes
Acontecia-lhe o que a todos acontece: aquilo que por impulso da sua mais íntima natureza demandava e em que se empenhava com a maior pertinácia, era-lhe concedido, mas ultrapassando aquilo que ao homem é benéfico. O que começava por ser sonho e felicidade, redundava em amargo destino. O homem do poder destói-se pelo poder, o homem do dinheiro, pelo dinheiro, o subserviente pelo servir, o sequioso de prazer pela luxúria.
Hermann Hesse, O Lobo das Estepes
02 julho 2012
30 junho 2012
26 junho 2012
leio, na madrugada
1
Leio, na madrugada, o teu diário. O teu amor exaltado, adolescente (mas também sapiente), o teu receio de que eu me sinta só, dão-me uma confiança renovada na... Não foi propriamente o teu amor que restaurou em mim o equilíbrio, mas a confirmação (corporal) de que o amor é uma forma de respiração a dois, o amor convulsivo e cheio de sabedoria, je est un autre, a chama que irrompe de cada morte, o movimento que se desenvolve dentro do próprio caos. Ele (o teu amor agora lido em palavras escritas para eu as ler) eleva-me a regiões de ampla liberdade; e do que sinto por ti dir-te-ei que nunca a vertigem se confundiu tanto com a serenidade. «Do que te falo — escreves — não é da memória, mas da memória do falo: sangram areias.»
2
No teu diário: Será maravilhoso recordar estes dias de mar, de amor... estas noites de separação... quando a separação for completa, total, irremediável...
No meu: Será que inventas agora o amor apenas para conquistares um passado? Um pátio da saudade futura?
No teu diário: Estou só… tento adormecer, mas não posso… que fazer quando se tem medo de satisfazer um desejo… todos os desejos... de abandonar tudo… o meu quarto é vasto, mas estou só… talvez amanhã...
3
… a ternura mais generosa; a viagem pelo sangue até ao cansaço; a nua intimidade; a lúcida necessidade do delírio, da vertigem; o silêncio; o abandono vigilante. Talvez amanhã, escrevias. A memória não poderá deturpar este dia tão completo, a que nem faltou a outra face do prazer, a trágica, quando à noite em tua casa houve problemas graves por terem descoberto a nossa ligação. Andamos tão afastados uns dos outros que quando alguém se liga a alguém — as armas apontam. Eu sabia; esperava-te; «vem para minha casa.» Em tuas bocas arderam os meus rios.
4
Amor, amor. No teu corpo diurno encontro a paz de uma ilha no meio da cidade cinzenta. Na fonte de mármore onde me derramo com lúcida vertigem. Elevado ao êxtase, à mística (também.) experiência (como quem vê o amor) de: árvores coladas incendiadas esquecidas da sua autonomia solidão irremediável um mais um igual a uma libertação possível impossível nobilíssima construção de nervos bocas tensões e ossos que bebem a fonte e a água a terra e as sementes o dia e a morte. Amar-te foi um sopro: quebraste, mas o meu amor é meu — e eu dele memória e haste.
5
No teu corpo esplêndido, sóbrio, encontrei um novo sentido para o meu corpo —
uma justificação (de silêncio feita) para o meu estado de contínua explosão, rigorosa vigilância —
mas agora sou a casa onde o sol se alojou, e respiro pausadamente a aprendizagem do ofício de manter-me vivo.
6
Somos o autor um do outro? Diz o povo: O homem faz a mulher e a mulher faz o homem. A interiorização recíproca da imagem do outro, a maturação do «eu» do sujeito, a matéria-prima do casal, dizem os sábios.
7
Como quem assiste ao espectáculo de uma vida/que posso modificar por ser a minha: a intimidade, a cumplicidade de quem procura os seus limites/quem entra neste jogo (da vida contra o excesso) em que tudo se arrisca não sabe de antemão onde o fogo se excede, e destrói/e leva ao infinito o desejo, o terror, o movimento incontrolável da morte/onde já quase não podemos suportar/os pobres limites do humano.
8
De uma carta para Z (escrita à boca de cena): apenas quando se destroem, ou, pelo menos, arriscam a destruição, é possível entre os corpos a comunicação do espanto, do silêncio, do caos, do pathos, da aridez, da vertigem, da violência… apenas quando assumem o seu potencial de corrupção, loucura, transparência... mas quando nos encontrámos foi como se a nossa capacidade de explosão se tivesse detido, aterrada, perante a lucidez de quem sabe que todos os limites podem ser destruídos, e com eles a vida, a descontinuidade... e tivéssemos inventado (ou descoberto) um paraíso artificial privado. Ficção? Ou era a sensação (nitidamente partilhada) de que os nossos corpos não poderiam deixar de representar o fogo senão quando o fogo os tivesse inteiramente destruído? O medo do vício, da corrupção? Com essa carne se alimenta o cerne das tragédias.
9
No teu diário: Ficarão apenas recordações destes dias cheios de, como dizer, de excitação,.. de vertigem? em que mulher me transformei após estas... experiências? Tenho medo... mas não quero apagar a mancha dos meus passos. Não posso deixar de pensar nisto, talvez palavras tuas, o amor que só se conquista no amor insaciável… no amor que nos alimenta e nos mata se morre... mas tenho ainda mais medo do teu silêncio, dos teus longos silêncios, e do esquecimento. Enfim, salve-se a vida que for possível. Ah, se ao menos eu tivesse coragem, ou essa manha que dizem de mulheres, de romper a tua noite...
10
No meu: Como se este rosto tivesse deixado de ser o meu rosto — este rosto (o meu) deixou de ser o meu rosto. Desconheço-me. Um rosto exilado do meu justo desejo de ler o seu discurso, conhecer a tessitura consentida pelo tempo. Tal como não posso habitar o meu caminho, mas apenas viajá-lo sem profundidade, o meu rosto é um nascimento, sempre original, a que assisto: um acto de obscura violência, de obscura criação de... liberdade? Ou só: criação. No amor como na morte, no amor da morte, na morte do amor, no amor-morte, e definitivamente (isto é: agora) a plenitude é levíssima, alcalina, transparente, flexível e imatura tal como o vazio, a disponibilidade (razão da tua vida) é pesadíssima, rugosa, opaca, intensa, grávida, voluptuosa. Que irrisão!
11
Afinal: um mais um é sempre incompletamente igual a um. Fizemos disto um projecto, mas falhámos. O teu corpo (afinal pouco subtil: a arte do amor aprende-se dificilmente) e o meu corpo (afinal desfeito, «pelo banquete da inteligência», dizias) afastaram-se. Separados por uma crosta de vidro, afirmo-o com a humildade de quem tudo experimentou, e pode julgá-lo, ah mas foram anos de frescor, espanto, caos, sangue, teatro, pânico, bonomia, voo de pássaros, suspensão, indisciplina, escuridade, cristal terrível — foram anos e anos vividos em alguns dias. E sempre um hiato, uma espada entre espáduas queimadas. Procurei, na tua fonte mais funda, a minha identidade — encontrei a sombra de uma sombra.
12
Escrevi por esse tempo: Cada uma das tuas inspirações e expirações, cada um dos teus reflexos fugitivos, o influxo que te mantém autónoma neste mundo vivo, os milhões de minúsculas vidas que transportas nos teus órgãos, têm mais importância — mas não saberia medi-la — do que os conceitos do amor e do ódio, dogmas, ideologias, sistemas sob os quais aparentemente construímos a nossa vida, aí onde apenas se revela um décimo do imenso iceberg da nossa existência, a vida eléctrica, a vida química, a energia infinita da matéria trágica mas também épica que somos. Escrevendo sobre ti, Magda (e eu fazia-o no teu «diário»), é da minha condição (andrógina, hermafrodita?) que falo. É o meu falo que humildemente elevo. A humildade de quem se sabe prisioneiro eterno de uma bola de lama indestrutível, de quem se afasta da multidão para se situar na solidão...
Escreveste à margem: «Humilde, tu? Tu, quem? Grandessíssimo sacana!»
Casimiro de Brito
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