assustas-me por me quereres assim, e por te acercares tão inesperadamente neste fim de dia de outono, como se uma nudez indecisa se aproximasse do meu leito sem eu lhe poder definir os contornos do olhar, pensei. sabes, nesta altura do ano os patos bravios migratórios já se encontram todos sobre o lago, e um tal anúncio pode causar-lhes a morte, ou pelo menos uma partida precipitada, e o sangue das suas asas ficar espalhado no meu peito. interrompes um pacto antigo que fiz com esta vida cómoda: a de poder sobreviver em troca de um pouco de ternura, das refeições às horas, do meu cachimbo pousado sobre o estirador, entre a elegância das lombadas dos meus livros, na certeza de estar construindo a obra que esperam de mim. tu vens de súbito tratar-me como um rapaz, abrir-me as cortinas de veludo do teu púbis com um sorriso azul, dizer-me que tudo começa agora, que deixaste crescer os cabelos para mim, e que eles te provocam uma sensação de crina nas nádegas, que queres correr.como pudeste saber que era eu a pessoa certa? e sê-lo-ei? como intentas possuir a minha alma, assim por antecipação? como pudeste adivinhar que atravessei desertos, que no meu palato tenho a secura de cactos cujos espinhos se me enterram nas gengivas quando sorrio? não receias a minha voracidade, este apetite por te sugar toda, desde a saliva ao sangue, esta vontade de morte que me acomete, de te cortar pelo sexo, de te abrir como a um brinquedo, atirando as peças para os quatro cantos do quarto? eu sei, marcaste encontro comigo num qualquer hotel, solitário e frio, onde chegarei sem bagagem e segurando com uma mão de suor o meu cartão de crédito. não teremos música, nem uma chávena de chá, nem interessará se lá fora chove ou se no passeio passa a figura da pessoa que outrora foi minha mãe. é suposto eu ter crescido, e não estou aqui nem para me explicar nem para finalmente te conhecer. estou aqui porque tu me insinuaste que querias possuir o meu olhar, com uma determinação clandestina. não te esqueças de fechar os vidros, porque estamos numa cave, e pode ser que lá fora seja veneza, que as vagas se agitem e venham entornar-se aqui dentro.pode acontecer que a cama se transforme numa jangada e tu consigas matar-me, dar-me descanso no alto mar, quando chegar a hora em que o sol ruboresce as asas dos anjos que trepam, expeditos, às cúpulas das igrejas. partir assim deste sítio terá de ser forçosamente inesquecível.
Vítor Oliveira Jorge
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