(...) decidiu então de uma vez por todas desmembrar essas
palavras coladas ao peito. Fez um balanço de todas as feridas abertas, bem como
de todos os sonhos enforcados, e fez-se à estrada, aquela que já havia
palmilhado previamente, mas agora, sem ter os pés a serem engolidos pela lama.
Não foi um caminho bonito o que percorreu, aliás, moralmente,
pode dizer-se que deixou muito a desejar, traiu, magoou, ignorou, feriu,
mentiu, julgou, gozou; mas foi esse o caminho que percorreu... E não o fez
sozinha, arrastou todas as pessoas que conseguiu, seduziu-as com palavras, com
promessas, essas, quase todas desleais, com gestos amorosos, esses, quase todos
falsos, arranjou um considerável número de bonecos para servirem o seu gosto
sádico de amor... Mas sim, foi assim que o fez, e realmente na altura fazia-lhe
pouco ou nada diferença, pode dizer-se que tinha gesso no lugar do coração; um
grande abraço de gesso, que por hora fazia-lhe o obséquio de segurar os cacos.
Então, se tinha o coração em cacos, como pode ter amado? Mas
amou, amou, amou e amou. Mas não é disso que se trata esta sua carta, voltemos ao
início.
Nunca soube muito bem identificar essa linha que as pessoas
do mundo parecem ver entre a realidade e a fantasia, essa linha que nos tempos
de hoje parece cingir e delinear o que é do que não é, e assim, por outras
palavras, o que é certo do que é errado, no entanto obrigara-se a reconhece-la
também como verdadeira, visto que para dançar neste mundo essa noção de senso
comum é todavia imperativa; e por falar em senso comum, também esse deixara
muito a desejar, foi perita em nunca ter de se desculpar, a encontrar sempre a
frecha entre a culpa e a projeção. E como era perita também em projetar! Não
havia nada no mundo que fosse sua ação particular, não, ao invés disso,
amanhou-se sempre com a safa do "porque alguém fez", "porque
alguém disse", "porque alguém me magoou", e não poucas vezes,
essa tampouco foi a realidade.
Era perita em muitas coisas, achava ela.
Bem, mas fundo, bem fundo, no fundo, ela sabia que era uma
questão de tempo para que eventualmente lhe descobrissem a careca, então
usava-se da sua beleza como arma secreta, a bem ou a mal sempre tivera um dom
para agarrar as suas presas de fora para dentro, fisgava-lhes os sentidos, e
verdade seja dita, não lhe fazia grande espécie se fosse a mal. E usou-a
incessantemente até perder a cabeça, ou o amor-próprio, ou o discernimento
social, ou a razão, ou o respeito, ou tantas outras coisas… Olhar para dentro e
não reconhecer nada foi o breu mais breu que alguma vez presenciou! Nada, nada
era dela, nada era ela. Nada. Que triste constatação.
Tornara-se uma má pessoa, e as más pessoas mais cedo ou mais
tarde, ou mudam ou se perdem, e ela não se queria perder.
Perdeu tanto na vida, perdeu tanta vida, perdeu tantas
pessoas na vida. Perdeu tanta vida! Que mais perdas seriam humanamente
insuportáveis.
Esta carta, quase que arrancada de dentro das lágrimas, foi
uma espécie um exorcismo para ela, pudesse ela desculpar-se de todas as suas
falhas, de todas as suas mentiras, de todas as suas burlas e calúnias… Mas sabe
que há certas atitudes que tomou na vida que ditaram mais do que esperava e por
isso se tornaram indesculpáveis (ao contrário também não as perdoaria), e no
entanto, é só isso que pode pedir, perdão! E aceitar, que mesmo isso possa
nunca ser possível.
São fardos pesados as pessoas que magoou, vivem nas suas
costas como parasitas que lhe sugam as forças e lhe cospem a vergonha na cara e
o arrependimento nos olhos.
Sabia que para mudar o curso da sua vida, drásticas mudanças
tinham de ser feitas, já lá ia o tempo que achava que mudar por outrem era
mudar, que mudar sem mudar, ou sem querer mudar era mudar. Mais uma vez palpar
o breu e sentir frio. Porque numa casa vazia a corrente de ar é forte e as
madeiras apodrecem, e ela não queria apodrecer.
Fechou então a casa para obras, fechou as janelas, fechou as
portas, fechou os livros, fechou as ranhuras, fechou as feridas, fechou o
delírio, fechou o amor, fechou a dor, fechou as mãos, fechou a mente, fechou a
memória, fechou o mau, fechou o corpo, fechou a alma, fechou tudo, envernizou o
chão, desentupiu a chaminé, consertou a torneira que pingava demasiada água há
demasiados anos, substitui as luzes fundidas, e finalmente pintou-a, com um
tímido tom verde.
Ainda que lhe seja muito complicado não recorrer à mentira (apercebeu-se
que a mentira estava mais intrínseca a si do que imaginava), e a manipulações (sempre
se usou desse ludíbrio, para levar a sua à vante), o que mais lhe custava
deixar era a raiva, todos os momentos em que o descontrolo comanda a mente, a
dor do coração que se transforma em náusea, a náusea que se transforma em dores
do coração, da sensação de montanha russa, do desespero sem fim, da questão sem
resposta imediata, do oito ou oitenta, da solidão aterradora, da certeza da
luta perdida, do dia sim, ou dia não, da persistente esperança, do pontapé no
estômago insuportável, de amar erradamente e ser errada também, de não saber
dizer basta, de andar às escuras na procura eterna, da paz faseada, do querer
endoidecer ou morrer, de ser duas ou uma dividida. De rir e querer chorar… É
sufocante o que tem de deixar, sem se perder a ela também no meio de tanta
merda.
c'
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