My fault, my failure, is not in the passions I have, but in my lack of control of them. Jack Kerouac
30 junho 2012
26 junho 2012
leio, na madrugada
1
Leio, na madrugada, o teu diário. O teu amor exaltado, adolescente (mas também sapiente), o teu receio de que eu me sinta só, dão-me uma confiança renovada na... Não foi propriamente o teu amor que restaurou em mim o equilíbrio, mas a confirmação (corporal) de que o amor é uma forma de respiração a dois, o amor convulsivo e cheio de sabedoria, je est un autre, a chama que irrompe de cada morte, o movimento que se desenvolve dentro do próprio caos. Ele (o teu amor agora lido em palavras escritas para eu as ler) eleva-me a regiões de ampla liberdade; e do que sinto por ti dir-te-ei que nunca a vertigem se confundiu tanto com a serenidade. «Do que te falo — escreves — não é da memória, mas da memória do falo: sangram areias.»
2
No teu diário: Será maravilhoso recordar estes dias de mar, de amor... estas noites de separação... quando a separação for completa, total, irremediável...
No meu: Será que inventas agora o amor apenas para conquistares um passado? Um pátio da saudade futura?
No teu diário: Estou só… tento adormecer, mas não posso… que fazer quando se tem medo de satisfazer um desejo… todos os desejos... de abandonar tudo… o meu quarto é vasto, mas estou só… talvez amanhã...
3
… a ternura mais generosa; a viagem pelo sangue até ao cansaço; a nua intimidade; a lúcida necessidade do delírio, da vertigem; o silêncio; o abandono vigilante. Talvez amanhã, escrevias. A memória não poderá deturpar este dia tão completo, a que nem faltou a outra face do prazer, a trágica, quando à noite em tua casa houve problemas graves por terem descoberto a nossa ligação. Andamos tão afastados uns dos outros que quando alguém se liga a alguém — as armas apontam. Eu sabia; esperava-te; «vem para minha casa.» Em tuas bocas arderam os meus rios.
4
Amor, amor. No teu corpo diurno encontro a paz de uma ilha no meio da cidade cinzenta. Na fonte de mármore onde me derramo com lúcida vertigem. Elevado ao êxtase, à mística (também.) experiência (como quem vê o amor) de: árvores coladas incendiadas esquecidas da sua autonomia solidão irremediável um mais um igual a uma libertação possível impossível nobilíssima construção de nervos bocas tensões e ossos que bebem a fonte e a água a terra e as sementes o dia e a morte. Amar-te foi um sopro: quebraste, mas o meu amor é meu — e eu dele memória e haste.
5
No teu corpo esplêndido, sóbrio, encontrei um novo sentido para o meu corpo —
uma justificação (de silêncio feita) para o meu estado de contínua explosão, rigorosa vigilância —
mas agora sou a casa onde o sol se alojou, e respiro pausadamente a aprendizagem do ofício de manter-me vivo.
6
Somos o autor um do outro? Diz o povo: O homem faz a mulher e a mulher faz o homem. A interiorização recíproca da imagem do outro, a maturação do «eu» do sujeito, a matéria-prima do casal, dizem os sábios.
7
Como quem assiste ao espectáculo de uma vida/que posso modificar por ser a minha: a intimidade, a cumplicidade de quem procura os seus limites/quem entra neste jogo (da vida contra o excesso) em que tudo se arrisca não sabe de antemão onde o fogo se excede, e destrói/e leva ao infinito o desejo, o terror, o movimento incontrolável da morte/onde já quase não podemos suportar/os pobres limites do humano.
8
De uma carta para Z (escrita à boca de cena): apenas quando se destroem, ou, pelo menos, arriscam a destruição, é possível entre os corpos a comunicação do espanto, do silêncio, do caos, do pathos, da aridez, da vertigem, da violência… apenas quando assumem o seu potencial de corrupção, loucura, transparência... mas quando nos encontrámos foi como se a nossa capacidade de explosão se tivesse detido, aterrada, perante a lucidez de quem sabe que todos os limites podem ser destruídos, e com eles a vida, a descontinuidade... e tivéssemos inventado (ou descoberto) um paraíso artificial privado. Ficção? Ou era a sensação (nitidamente partilhada) de que os nossos corpos não poderiam deixar de representar o fogo senão quando o fogo os tivesse inteiramente destruído? O medo do vício, da corrupção? Com essa carne se alimenta o cerne das tragédias.
9
No teu diário: Ficarão apenas recordações destes dias cheios de, como dizer, de excitação,.. de vertigem? em que mulher me transformei após estas... experiências? Tenho medo... mas não quero apagar a mancha dos meus passos. Não posso deixar de pensar nisto, talvez palavras tuas, o amor que só se conquista no amor insaciável… no amor que nos alimenta e nos mata se morre... mas tenho ainda mais medo do teu silêncio, dos teus longos silêncios, e do esquecimento. Enfim, salve-se a vida que for possível. Ah, se ao menos eu tivesse coragem, ou essa manha que dizem de mulheres, de romper a tua noite...
10
No meu: Como se este rosto tivesse deixado de ser o meu rosto — este rosto (o meu) deixou de ser o meu rosto. Desconheço-me. Um rosto exilado do meu justo desejo de ler o seu discurso, conhecer a tessitura consentida pelo tempo. Tal como não posso habitar o meu caminho, mas apenas viajá-lo sem profundidade, o meu rosto é um nascimento, sempre original, a que assisto: um acto de obscura violência, de obscura criação de... liberdade? Ou só: criação. No amor como na morte, no amor da morte, na morte do amor, no amor-morte, e definitivamente (isto é: agora) a plenitude é levíssima, alcalina, transparente, flexível e imatura tal como o vazio, a disponibilidade (razão da tua vida) é pesadíssima, rugosa, opaca, intensa, grávida, voluptuosa. Que irrisão!
11
Afinal: um mais um é sempre incompletamente igual a um. Fizemos disto um projecto, mas falhámos. O teu corpo (afinal pouco subtil: a arte do amor aprende-se dificilmente) e o meu corpo (afinal desfeito, «pelo banquete da inteligência», dizias) afastaram-se. Separados por uma crosta de vidro, afirmo-o com a humildade de quem tudo experimentou, e pode julgá-lo, ah mas foram anos de frescor, espanto, caos, sangue, teatro, pânico, bonomia, voo de pássaros, suspensão, indisciplina, escuridade, cristal terrível — foram anos e anos vividos em alguns dias. E sempre um hiato, uma espada entre espáduas queimadas. Procurei, na tua fonte mais funda, a minha identidade — encontrei a sombra de uma sombra.
12
Escrevi por esse tempo: Cada uma das tuas inspirações e expirações, cada um dos teus reflexos fugitivos, o influxo que te mantém autónoma neste mundo vivo, os milhões de minúsculas vidas que transportas nos teus órgãos, têm mais importância — mas não saberia medi-la — do que os conceitos do amor e do ódio, dogmas, ideologias, sistemas sob os quais aparentemente construímos a nossa vida, aí onde apenas se revela um décimo do imenso iceberg da nossa existência, a vida eléctrica, a vida química, a energia infinita da matéria trágica mas também épica que somos. Escrevendo sobre ti, Magda (e eu fazia-o no teu «diário»), é da minha condição (andrógina, hermafrodita?) que falo. É o meu falo que humildemente elevo. A humildade de quem se sabe prisioneiro eterno de uma bola de lama indestrutível, de quem se afasta da multidão para se situar na solidão...
Escreveste à margem: «Humilde, tu? Tu, quem? Grandessíssimo sacana!»
Casimiro de Brito
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