13 maio 2014

see-throughmee

Escrevi-te. Apaguei. Voltei a escrever. Que preciso de estar contigo, ao teu lado por umas horas. Num dos textos pus "de mãos dadas". Achei ridículo, não combina nada connosco, só se fosse para um braço de ferro. Noutro, invoquei o teu silêncio e a parcimónia de palavras que tanto me exaspera como me agrada, bem como a falta de juízo, de juízo nenhum, na verdadeira acepção da palavra: as coisas são como são e tu nunca me julgas. Se dá, dá. Se não, boa noite e um queijo. Que não durávamos mais de um dia de cama e mesa, dizes tu. Tens razão e no entanto as mãos dadas, os olhos fechados e um silêncio mútuo que não julga e não cobra, que induz ao descanso como uma almofada, uma boa almofada de penas de ganso da mongólia, revestida a seda da pérsia e trazida em mãos por reluzentes escravos núbios. Um silêncio de luxo, egípcio, raríssimo entre duas criaturas de deus. Insisto na parvoíce, "Preciso de ti agora", mas sem te querer assustar, acrescento que não quero nada de sexo, nem sequer te toco. Se quiseres, nem as mãos dadas. Procuro em mim todas as palavras que possam significar exactamente o seu contrário para não me delatar e corro-me de fio a pavio, como um programa de computador, que vai rejeitando os sinónimos de tudo aquilo que não me é permitido dizer. Explico-te que não almejo qualquer traição mas sei que não me acreditas e que sabes que será sempre mais um ardil para te enfiar a mão na braguilha e ta desapertar enquanto te finges de morto, como um cão bem ensinado. Tens razão, como sempre. Vais esticar os braços pra trás , bocejar e fingir que não te interesso porque tens sono e uma vida algures, que te espera enquanto eu te empato. Escrevo mais um lugar-comum que apago de imediato, por vergonha. Não temo o efeito do calão nem da rudeza das palavras, mas envergonho-me dos lugares-comuns tipo só te quero como amigo ou prometo que vamos só conversar, oferece-me um café. Na verdade, detesto café e detesto essa pedinchice novelesca que soa a manipulação bacoca e carente: sei-te mais esperto do que isso e eu, bem melhor do que isso. Não te peço como amigo porque já o és. E os amigos conversam, mesmo quando estão calados na sua introspecção de ouro, a tal das penas de pavão vindas do tesouro de mitridates ou lá o que foi que eu disse. Então porque te chamo calada e indago por onde andas? Não que vá atrás de ti, nunca fui: sabes isso. Mas percorro todos os caminhos dentro da minha cabeça para chegar a ti. Só vou quando me chamas e é este o santo e senha entre nós. quando fazes parecer que sou eu que me ofereço, mas na verdade sou eu que te obrigo a escolher, a teres a última palavra. Porque é essa que importa, a última palavra: a que decide se vou ou fico. Se corro para ti apenas dentro de mim ou se corro para ti para que entres em mim, ainda que quase sempre num futuro adiado. Por isso não acredites quando digo que de ti só quero amizade. Um almoço numa tasca manhosa e eu a jurar por entre o prato do dia e o vinho a martelo que um dia te provarei o contrário: tu sabes bem o quê. Tendo sempre para as figuras tristes, quando me olhas de certo ângulo, mas penso que essa questão seria ultrapassável. Ainda bem que apaguei tudo, que nem um rascunho guardei do que acabei de escrever e que tu nunca lerás nada disto. Delete, delete, shut down and go to sleep.

sofia vieira

08 maio 2014

diários

 La Vie d'Adèle (2013)
nessa noite chorou por M, triste e desesperadamente, como um recém nascido, entre convulsões e um choro que não cabem no peito. chorou como já não chorava há muito tempo. chorou, como se fosse a única coisa a fazer, como se chora um morto, como se chora a vida também;
nessa noite só existiram elas dentro daquele coração, daquele quarto, naquela cama.







 

06 maio 2014

'este dia este perverso dia que veio depois de ontem'

Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como 
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.




 Inês Lourenço